RAIOS RASGAVAM O CÉU ILUMINANDO OS ROSTOS TRISTES DAS ESTÁTUAS DE SANTOS e anjos suplicantes. O ruído estrondoso do trovão anunciava uma forte chuva a caminho, porém numa cidade como São Paulo, isso era totalmente aceitável. Sandro fazia a ronda noturna no cemitério do Araçá com uma lanterna fraca, no qual mal podia se ver os detalhes dos túmulos com sua pequena luz dourada.
Era um moço valente, que não tinha medo daquele tipo de emprego como a grande maioria das pessoas, mas aceitou-o somente para criar seus filhos pequenos. Era alto, louro, de olhos verdes e corpo forte. Seus colegas o chamavam de Gringo, pois mais parecia um estrangeiro. Seus olhos estavam atentos a qualquer invasão, coisa mais que normal de acontecer naquele cemitério, porque os jovens góticos da cidade adoravam fazer suas orgias dentro daquele local e por conta disso, tinha que colocá-los para fora dali. Estava acostumado com esse tipo de situação.
Ele percorria as alamedas com certa pressa, pois agora para marcar sinal de presença constante na vigia, tinha de percorrer os jazigos de uma em uma hora para passar o cartão magnético em um dispositivo instalado no escritório da administração, confirmando assim que estava ali.
Em uma dessas voltas, teve de parar para amarrar os cadarços do tênis, prevendo que a qualquer momento cairia por esse descuido. Abaixou-se em um movimento automático e se pôs a cumprir essa pequena tarefa. Não saberia dizer, mas sentiu a estranha sensação de que algo o estava observando. Olhou em volta com sua fraca luz dourada, contudo nada viu, apesar de que a sensação ainda persistia. Então, um leve ruído fez seus pêlos se eriçarem. Ao virar-se, notou que o barulho provinha apenas de algumas folhas ao chão sacudidas de forma peralta pelo vento.
Porém, poderia jurar que ouvia mais algum ruído misturado ao vento, algo como um sussurro vindo das tumbas. Sandro levantou-se dos joelhos e olhou à frente, a fim de continuar sua caminhada até o dispositivo marcador de presença. Quando um raio cruzou o céu, iluminando brevemente seu caminho, Sandro viu a silhueta de um homem bem na sua frente. A mesma desapareceu em seguida, junto com a luz, deixando-o no escuro novamente. O homem não estava mais lá. A luminosidade do fenômeno fora tão grande que ele via pequenas bolhas de luz brincando em seus olhos. Ele arfava devido o susto, pois não esperava que visse algo do gênero. Estaria ficando louco? Não era possível! Não acreditava em assombrações, nem em almas do outro mundo, entretanto o coração lhe dizia outra coisa, lutando com a razão. Ele sabia que tinha visto aquilo bem diante de si, coisa que jamais acontecera trabalhando ali. O emprego era tranqüilo e os chefes não lhe pegavam no pé. E não tinha nenhum tipo de estresse para começar a ter alucinações.
Um sentimento pairava dentro de si dizendo para não continuar ali e um receio começou a tomar conta do seu corpo. A imagem do homem ainda dançava insistente em seus olhos, como se ela fosse palpável. Parecia tão real! Mas não podia ser. Os espíritos não existiam! Esse pensamento passava pela sua cabeça, todavia aquele receio alfinetou seu interior mais uma vez. Era como se ouvisse uma voz dentro de si dizendo para abandonar aquele lugar imediatamente. Se a silhueta que avistou o fez vibrar como se tivesse levado um choque elétrico, o novo ruído que surgiu dentre os mausoléus lhe deu uma descarga vibrante.
Sandro podia ouvir um rugido baixo vindo com o vento como se fosse um silvo, estando em todos os locais ao mesmo tempo. Ele olhava em todas as direções apontando a lanterna, tentando descobrir de onde vinha esse som apavorante. “Poderia ser um cachorro que entrara ali ao acaso”, pensou ele. Mas cães não produziam esse tipo de ruído. Pensou em uma fera selvagem, porém estava em uma cidade grande demais para ter feras à solta, ainda mais próximas de uma avenida tão movimentada. Seus ouvidos captaram novamente esse ruído, agora muito mais próximo de si. E ouviu o som de passos. Correndo. Mais próximos. Vindos em sua direção. O medo inflou dentro do seu estomago e seus instintos agora berravam.
“Corra, corra, CORRA!”
E Sandro obedeceu a voz da intuição. Seus temores mais primitivos até o momento latentes agora se manifestavam e disparavam correntes no cérebro, impulsionando as pernas rumo a qualquer lugar longe dali. O vento batia forte em seu rosto e os primeiros pingos de chuva se mostraram presentes. Mais raios disparavam no céu, iluminando as estátuas e provocando uma cena fantasmagórica. A respiração estava ofegante, mas podia ouvir o ruído que sabia ser provocado por algo que estava em seu encalço... querendo matá-lo. O medo berrava dentro dele, pois de alguma forma ele sabia que aquilo que o perseguia não era natural. A chuva o salpicava no rosto e nas roupas, tornando o ato de correr mais difícil. “Os mortos haviam retornado à vida”, pensava ele. E eles estavam reclamando pela negligência de não ter vigiado seu sono eterno adequadamente.
Correndo como podia em meio ao concreto traiçoeiro, dobrou numa curva à direita e forçou um pórtico de um mausoléu que se abriu instantaneamente. Sandro fechou-o atrás de si. Com a fraca luz da lanterna, hesitando no escuro do local, iluminou a entrada para uma escadaria de metal giratória, um tanto enferrujada pelas mãos do tempo. Ele desceu os degraus correndo, fazendo o maior estardalhaço, esperando que o mausoléu fosse invadido pelo que o perseguia, entretanto tudo ficou no mais absoluto silêncio. Um silêncio quebrado apenas pela chuva que se transformou rapidamente em tempestade. Sandro terminou o acesso da escadaria e notou que se encontrava no interior de uma câmara mortuária, onde uma família inteira jazia em descanso.
Sandro percorreu o local com a lanterna e identificou os túmulos, onde provavelmente estariam os restos mortais dentro dos caixões. Esses túmulos eram como sarcófagos, selados com cimento e aparentemente possuía formas semelhantes àquelas presentes por todo o terreno do cemitério, com estátuas de anjos por toda a parte. Ele mal conseguia distingui-las por causa da luz difusa e cada vez mais fraca da lanterna. “Pelo menos os mortos não conseguirão sair de lá para me pegar”, pensou ele. Por ironia do destino, a luz dourada da lanterna se extinguiu como vela assoprada por um vento agourento. Estava na escuridão total agora. Os únicos ruídos que ouvia eram as goteiras que pingavam nas pedras do túmulo, produzidas pela palpável umidade e pela tempestade. Os relâmpagos iluminavam parte do interior do mausoléu através de janelinhas de vitral coloridos concedidas em seu projeto arquitetônico. A cada jato de luz que o interior do mausoléu recebia, ele sentia como se estivesse em um caleidoscópio iluminado.
E então ele viu vários pares de brasas logo à sua frente. Seu íntimo disparou mais uma vez, lhe dizendo que aquilo eram olhos medindo seu corpo com um brilho voraz. Ficou ainda mais horrorizado quando um novo relâmpago cortou o céu e este o fez distinguir que cada par de brasas pertencia a uma cabeça humana... que o estavam encarando. E se aproximando dele lentamente. Sandro, sem poder retirar os olhos dessa cena medonha, retrocedeu alguns passos em direção as escadas pronto para subir correndo de volta por onde entrou. O medo crescia e inflava como um balão de hélio. O terror se instalara dentro de si por completo. E encostou-se a algo gelado, que o fez parar de respirar por dois segundos: um tórax nu e gelado... como um cadáver.
Olhou para cima e viu um rosto imenso o encarando com aqueles mesmos olhos em chamas. Arregalou os olhos quando sentiu a pesada mão do desmorto o segurando pelos ombros. O estômago era uma tormenta de pânico. Sentiu mais mãos frias tocando seu rosto, seus braços e seu corpo por baixo da camiseta. As cabeças que o estavam encarando agora estavam bem na sua frente e seus olhos verdes mergulharam naqueles olhos de pantera no escuro. Sentiu seus braços e pernas sendo alçados violentamente. Vários pares de adagas entraram na carne. Sentiu uma dor horrível, gritando por socorro e se debatendo como um louco. As mãos que o seguravam eram firmes e ele mais parecia uma marionete sufocada por uma criança perversa, empregando mais força que o necessário ao segurar uma frágil boneca. Sua cabeça foi repuxada para trás, lhe debitando alguns de seus fios cacheados. Mais quatro adagas entraram em seu pescoço, dois pares de cada lado. Mais perfurações foram causadas em seus punhos, palmas e costas das mãos. Sua camiseta foi rasgada e outras adagas perfuraram seu peito nu. Ele sentia que o sangue estava esvaindo-se com rapidez. Aqueles vampiros estavam tomando seu sangue, sua vida.
Ele perdeu as forças e não mais se debateu. Seu corpo ficou mole, contudo ele ainda podia ouvir murmúrios de quem o atacava. Depois disso, não podia mais visualizar os flashes dos relâmpagos brilhando no céu. Ele caiu no chão de pedras, jogado sem piedade. Ao lado de Gringo oscilava a luz dourada da lanterna iluminando seu rosto de olhos arregalados e mortos.
Autor: Julio Vernareccia
