BELOS E MALDITOS - Capítulo 1


O Encontro

Enri, o Escuro


Senti uma vibração estranha ao abrir os olhos. Havia alguém tenso num cômodo próximo ao meu quarto. Ondas parecendo chibatas deslizavam pela minha pele. Saí debaixo da cama e me aprumei. Apesar de ter um belo quarto, com vários aparatos tecnológicos modernos, não usava a cama como as pessoas usam. Nós, Escuros, tínhamos a mania de dormir em locais apertados, com os braços cruzados no peito. Meu local predileto era embaixo da cama.
Olhei-me no espelho. Os olhos amendoados, a pele branca era como leite e os lábios levemente rosados estavam lá. Analisei aquele rosto como se não fosse o meu. Ousei temer um dia não ser mais tão belo como agora, mas lembrei-me que era uma criatura da qual o tempo não poderia mais tocar.
Saí do quarto só de cuecas exibindo o corpo rígido e os músculos definidos. Ao entrar na sala vi um anjo no sofá. Tão branco quanto eu. Com as mãos cruzadas na altura do queixo. Ar de preocupação. Só de calças. A tatuagem do peito à mostra. Os cabelos ondulados e escuros caindo sobre os olhos. As vibrações que sentia vinham dele.
Enri, meu criador.
– Eu me lembro. Eu pedi a você. Eu ordenei a você. – murmurou ele com a as mãos sobre a boca. As vibrações ficaram mais intensas como se realmente quisessem me chicotear. Ele nem sabia da existência desse meu dom e sentia que não devia compartilhar isso com ele, por mais que ferisse meu coração.
Continuei com os olhos pregados nele tentando compreender o que ele disse. Uma das características de Enri é que ele falava algumas coisas em enigmas e eu demorava certo tempo para entender.
 – Do que você está falando? – questionei.
– Eu pedi a você, Nicholas. E você me desobedeceu. – ele levantou o rosto e seus olhos de um verde hipnótico e claro pairaram sobre os meus. – Você ainda vai colocar nossa espécie em risco.
O olhar dele era tão profundo que fazia o chão que eu pisava esfarelar.
– Desculpe... não sei do que está fal... – antes de terminar a frase eu havia compreendido.
Compreendi porque ele agora vociferava as palavras na minha cara. A saliva dele atingia meus poros. Ele havia usado sua velocidade sobrenatural e foi tão rápido que o ar fez um ruído agudo ao ser deslocado.
– EU PEDI MAIS DE MIL VEZES PRA VOCÊ NÃO CAÇAR PRÓXIMO DE ONDE NOS ESCONDEMOS! E VOCÊ ME DESOBEDECEU!
Inutilmente eu tentava apartar aquela sensação de aperto dentro do peito com as mãos estendidas, pedindo para ele parar com aquilo. Fazia aquele gesto como se quisesse me proteger de suas palavras ou de sua ira.
– Mas... como você soube disso? – perguntei tentando adivinhar como ele havia descoberto.
– O mundo inteiro sabe! – ele apontou para a TV de plasma logo à frente do sofá – Dê uma olhada você mesmo.
Foquei a enorme TV à nossa frente e senti meu coração despencar e voltar ao lugar. A voz do âncora do telejornal narrava imagens de policiais em frente à uma casa noturna, com seguranças alvoroçados correndo pra lá e pra cá tentando acalmar a multidão que saía correndo porta afora. A casa noturna onde eu estivera na noite passada. Depois apareceu um close de um garoto de olhos azuis. Na reportagem mencionaram que ele simplesmente havia sido assassinado dentro da danceteria com ferimentos na região da jugular. Não havia sangue no local do crime.
Douglas. O cara que eu matei. 
Enri parecia mais calmo.
– Eu falei que pra sermos discretos Nicholas. Temos de caçar pessoas que não farão falta pra ninguém. Bandidos, drogados, mendigos, putas, gente solitária. Essa laia. Porque você matou um cara dentro de uma balada aqui perto?
– Enri, como você sabe que quem matou esse cara fui eu? – questionei em tom de desafio.
– Primeiro, você está bem alimentado. Está até corado. Segundo, não existem outros Escuros que morem aqui perto, a não ser eu e você. Ontem eu estava aqui e não precisei me alimentar. Terceiro, você não sabe mentir. Deu pra ver nos seus olhos quando você viu a reportagem.
Pronto.
Ele tinha descoberto. Enri era bem esperto e observador. Observador demais pro meu gosto. Tinha visto até que eu estava corado. Nem eu havia percebido isso. Sinal de que precisava ficar mais atento.
– Tudo bem. – ele disse mudando seu tom de voz – Vamos passar a agir de forma mais discreta, tá legal? Isso não pode mais acontecer, ok?
Senti as vibrações dele se acalmando e me convidando para me atirar em seus braços.
Ele se sentou novamente no sofá e agilmente corri e me estirei com ele. O cheiro doce dele invadiu minhas narinas e aspirei aquele aroma maravilhoso como se fosse a primeira vez que sentia sua fragrância. Ficamos daquele jeito um tempo até eu quebrar o silêncio.
– Tá pensando em quê? – perguntei.
– Em como você caçou aquele cara que matou.
– Quer saber como foi? – meus olhos encontraram os dele.
– Sim. – respondeu ele afagando meus cabelos revoltos e repicados.
– Queria caçar um menino branco e de olhos azuis. Fui àquele lugar porque sabia que encontraria alguém com essas características facilmente. Apesar de todos os caras da balada ficarem olhando pra mim, foquei em um que possuía o que eu desejava e era do jeito que havia imaginado.
Os olhos de Enri brilhavam de satisfação. Continuei.
– Daí um me chamou a atenção. Não demorou muito e ele já estava olhando pra mim. Ficamos nos olhando na pista e ele se aproximou.
– Nossa, ele teve coragem então! – espantou-se Enri. – Mesmo que os mortais tenham fascínio por nós, algo dentro deles diz para não se aproximarem mais. Acho que é o instinto de autopreservação. De alguma forma, se chegarem mais perto sempre correrão risco de morte. Mas me diga o que aconteceu a seguir. – Enri me olhou de forma maliciosa e passou o polegar pelo meu queixo.
– Bem, daí usei o artifício da sedução. Eu o beijei.
Enri revirou os olhos.
– Ah, você precisa sempre fazer dessa forma quando caça? Porque não pode simplesmente chegar e morder? – senti uma onda tensa emanando de seu corpo.
Hellooo! Eu tava na balada! Como eu ia morder alguém assim com um monte de gente em volta.
– Mano, ninguém ia perceber! Era só chegar e pronto.
– Ai meu que saco você hein. A gente não pode ficar em paz por um momento sem que você tenha ciúmes de tudo o que eu faço? – o tom da minha voz era para sentenciar essa discussão imbecil.
Enri ponderou sobre o que disse. As vibrações que sentia mudaram novamente, demonstrando arrependimento com o comentário feito.
– Tá legal... você tem razão – disse ele fazendo um biquinho. – Desculpe. E desculpe por ter berrado com você agora.
Beijei seus lábios finos pela enésima vez.
– Nick, to com fome. Preciso sair pra caçar. Quer me acompanhar?
– Não, me alimentei ontem, lembra? – respondi com certa ironia na voz.
– Mesmo assim. Venha pelo menos me fazer companhia.
Agora foi a minha vez de revirar os olhos.
– Tá bem, tá bem! Vou colocar uma roupa.
– Nada muito “cheguei”, tá? – brincou Enri.
– Olha só quem fala! – retruquei. – Ah! Esqueci de uma coisa. Mesmo que meu coração não bata mais, ele é todo seu. Não se esqueça.
Voltei correndo para o quarto largando um Enri com os olhos brilhando de emoção.


***


Meia hora depois estávamos no alto do prédio onde morávamos. Enri havia pensado em visitar e se alimentar de uma pessoa que possuía altos recursos financeiros. Ele conhecia um jovem e órfão milionário chamado Rômulo Sperandeo. Seus pais foram viajar para Angra dos Reis, mas na ocasião Rômulo recusou o convite. E por conta disso sobreviveu ao trágico acidente de helicóptero que vitimou sua família. Como seu pai havia deixado tudo para ele em um testamento antecipado, Rômulo herdou toda a fortuna.
Uma história triste, por assim dizer.  Entretanto, Enri disse que queria sugar sangue nobre. Desde a morte de seus pais, Rômulo, que havia conhecido Enri uma noite em um bar, tornara-se doador, uma pessoa que conhece a existência de vampiros e se oferece como alimento aos Escuros. Ele havia comentado comigo uma vez sobre esse cara e tinha dito que um de seus maiores desejos era se tornar imortal pra ver se sua dor era amenizada. Havia me dito também que não teria problemas em beber dele, uma vez que nesse caso não havia mortes.
– Você sabe onde ele mora? – questionei com as mãos nos bolsos da calça preta.
– Sim, Nick. Estou só avaliando as possibilidades. Não sei se seria melhor pegarmos ele em casa ou no bar onde costuma encher a cara. Desde que seus pais morreram, ele torra a grana com bebidas. É um alcoólatra. E uma vergonha para os pais que devem estar se revirando na cova.
– Nossa! Você é bem insensível de vez em quando! – respondi.
 – Haha! De vez em quando? Você sabe que sou completamente desumano. Desprovido de qualquer sentimento mesquinho. A não ser por você.
Eu revirei os olhos.
Ficamos em silêncio algum tempo enquanto o vento lambia nossos casacos e cabelos. O uso de roupas mais pesadas era somente uma questão de bom-senso entre os mortais, visto que vampiros não sentem variações de temperatura de forma tão direta quanto seres humanos.
Enri olhava os prédios logo abaixo e analisava com calma os movimentos da cidade. As luzes eram fortes e vibrantes. Víamos tudo com exatidão. Olhei em seus olhos e percebi que ele estava fazendo algo que eu gostava. Ele estava apurando a visão para enxergar além do que a visão humana consegue ver. Inflava o ar da noite, que chegava gostoso em nossas narinas desenvolvidas, sentindo e apreciando os aromas que o vento trazia.
Ele agia como um perfeito predador.
– Vamos? – perguntou Enri com um meio sorriso.
– Pra onde?
– Daremos um pulo na casa dele só para ter certeza. Talvez ele esteja no bar de novo, mas não custa conferir.
– Certo, então vamos descer e caminhar.
– Quem disse que vamos caminhando? Vamos fazer um caminho muito mais fácil. Nós vamos por cima.
– Por cima? Como assim?
– Saltando, oras! – respondeu ele erguendo os braços.
Fiquei imaginando os tipos de saltos que faríamos e ao olhar para o parapeito do edifício, eu entendi. E fiquei com receio.
– Você não me ensinou a saltar! – indaguei.
– Pelo que sei você salta muito bem. Lembro-me de você saltando no começo. Isso vai ser fácil.
– Sim, quando saltamos daquela vez em que caçamos pulamos somente um sobrado. Estamos num prédio muito grande dessa vez.
– Querido, nós vamos saltar de um prédio para outro. Pensou que íamos nos jogar ao chão? Que besteira. Mesmo que a gente não morra, seria uma queda feia. Vários ossos quebrados.
Eu não estava afim de me quebrar. É chato colocar os ossos no lugar e é necessário o consumo de muito sangue pra realizar essa proeza.
Enri colocou seu braço em minha cintura e farejou de leve meu pescoço.
– Vem! Eu ajudo você na primeira vez.
Estávamos na ponta. Engoli em seco ao olhar para baixo, na borda do topo. Com a visão normal, via as pessoas como se fossem formigas. Os carros passavam nas ruas parecendo besouros em linha reta.
– Preparar... – Enri curvou as pernas.
– Tem certeza, meu? – estava com medo.
– Flexionar... – Enri dobrou ainda mais os joelhos.
– Sério, não quero mais ir! – estava em pânico.
– Saltar! – Enri deu impulso e saltamos.
Enri deve ter ficado permanentemente lesado do ouvido direito. Dei um berro tão alto que espantaria até as nuvens do céu.
Contudo, a sensação foi indescritivelmente fantástica.
Quando Enri deu o impulso, fomos içados num movimento uniforme e simétrico. Agarrei-me em seu corpo, mas éramos tão leves que parecíamos caminhar em pleno ar. Olhei rapidamente para baixo e me deu frio na barriga vendo tudo passar rápido daquela forma. De repente, começamos a despencar. Eu entrei em pânico e minhas unhas cravaram na pele dele. O ar deslocou-se e parecíamos estar dentro de um vendaval, tamanha a velocidade. Entretanto, no segundo seguinte, estávamos em solo seguro novamente como se nada tivesse acontecido.
– Uau!? – exclamei arfando. – Que coisa mais... incrível!
Apesar do pânico inicial, a sensação seguinte foi maravilhosa.
– Meu, não tem segredo. Você aprende rápido! É inteligente e corajoso. Tenho certeza de que vai aprender mais e mais. Sair-se-á muito bem, com certeza! – mencionou Enri entusiasmado com minha reação, sorrindo e mostrando os caninos levemente pontudos.
Se meu corpo fosse vivo, teria ficado vermelho de vergonha naquele instante. Sempre ficava muito sem graça com elogios. Devido o salto eu ainda tremia levemente como se tivesse adrenalina injetada na corrente sanguínea.
Enri passou por mim em direção à borda do prédio onde estávamos.
– Chegue mais perto, Nick. Agora eu vou fazer sozinho e você observa. É só olhar onde quer saltar e desejar. O corpo faz o resto. É bem simples. É como usar a voz de comando.
– Tudo bem. – respondi um tanto inseguro.
Enri olhou para o prédio seguinte, flexionou as pernas e saltou. A visão foi fantástica. Enri deu um salto estupendo, balançando as pernas com graça. Seu casaco farfalhou sonoramente com o vento no trajeto. Pousou leve como um gato na borda seguinte. Aprumou-se e gesticulou para que eu fosse também.
Pensei da forma como ele havia ensinado. Olhei para onde queria que meu corpo mágico me levasse e desejei. Flexionei as pernas como o havia visto fazer e impulsionei.
A mesma sensação do primeiro salto me invadiu. Porém, agora tive a sensação de liberdade absoluta, pois instintivamente repetia os mesmos movimentos do meu criador. Eu literalmente voava em direção à borda seguinte, com o vento chacoalhando e desgrenhando ainda mais os meus cabelos. O frio dentro da barriga era tão maravilhoso que por mim poderia me locomover sempre dessa forma. Não imaginava que possuía uma força tão grande nas pernas também.
A partir daí passamos a saltar individualmente. Sentia que do corpo de Enri emanavam vibrações de satisfação para comigo. Ele estava orgulhoso de mim, mas não era necessário o uso desse talento para notar. Isso era visível em seus olhos.
Depois de mais uns saltos, paramos em cima de um prédio.
– Veja, Nick. O edifício é aquele.
À nossa frente, estava o prédio onde Rômulo morava. Enri ergueu a mão e apontou para uma sacada acesa.
– Observe. Milagrosamente ele está em casa hoje. – lançou ele ironicamente.
Fiquei observando o edifício na direção em que Enri apontava. O projeto arquitetônico era muito bem feito. Haviam detalhes incrustados no concreto, como linhas e figuras sem intenção. Eram formas abstratas que corriam de lá pra cá, num ziguezague planejado.  Com certeza quem morasse no edifício possuía vastos recursos financeiros. Não somente esse prédio em si, mas o bairro todo era único. Diferente dos demais. Percebi que tínhamos saído dos Jardins, entretanto estávamos ainda na região nobre do centro de São Paulo.
– Sinto cheiro de bebida. – mencionei.
– Exato! – disse Enri com um meio sorriso, destacando uma covinha existente no rosto. – Neste exato momento ele está bebendo.
Enri estendeu sua mão pálida em minha direção. Seu olhar verde estava mais claro apesar da escuridão da noite.
– Vamos juntos dessa vez. – disse.
Segurei sua mão e da borda do último edifício saltamos diretamente para a sacada. Claro que o salto foi perfeito, visto que estava sendo segurado por ele. Pousamos no parapeito. Pensei que de repente me desequilibraria, contudo ter um corpo vampiresco tem suas propriedades mágicas e isso não aconteceu.
Leves como plumas. Fortes como aço.
Mais um pequeno salto nos fez entrar no terraço. Agora estávamos de frente para a grande janela que o separava do living. Enri colocou sua mão no vidro da janela e a porta deslizou calmamente para o lado. O cheiro de uísque ficou mais forte quando o ar quente do interior do cômodo nos alcançou.
– Sinta o cheiro forte. Ele bebe demais!  – sussurrou Enri. Sua voz era inaudível para humanos, não para mim.
Assenti com a cabeça e entramos no living.
O local era grande, bonito e bem decorado. Havia móveis planejados espalhados pelo apartamento, mas as condições do mesmo estavam começando a ficar precárias. Havia poeira por cima das coisas e pelo chão. Peças de roupas masculinas (que provavelmente pertenciam a Rômulo) estavam espalhadas por cima de um grande sofá em formato L. Vagarosamente andei pela ampla sala, passando pela sala de jantar. Apesar de termos corpos físicos, nossos movimentos eram silenciosos. Ali, um espelho fazia a vez de parede e puder ver nossos reflexos. Estávamos mortalmente belos, como se o vento não tivesse nem sequer nos acariciado. O cheiro da bebida intensificou-se quando alcancei um corredor com várias portas. Imaginei quem da família de Rômulo dormia em qual quarto.
Uma música melancólica começou a ecoar pelo local. Fiquei apreensivo, porém reconheci aquela melodia que me tocou aos poucos. Seu nome estava arquivado em algum local distante e brumoso da minha memória, entretanto recordei-me. Rômulo ouvia Sonata ao Luar de Bethoween. Comecei a sentir ondas frias de vibração. Ele emanava algo diferente do que já havia sentido. Era algo lento, denso e gelado. Entretanto, pela música e por aparente estado de espírito, imaginei que aquilo fosse sinal de depressão.
Era difícil descrever a segunda sensação que as vibrações de Rômulo emitiam. Era uma coisa corrosiva e morna. Era como se fosse rancor ou mágoa. Algo contido dentro de um coração machucado e vitimado por um causo da vida, por uma tragédia. Estava sentindo muita pena dele naquele momento.
A terceira sensação me deixou apreensivo e estaquei. Essas vibrações não vinham de Rômulo. Nem de Enri. Muito menos de mim.
Parei e prestei atenção, tendo um Enri se movimentando logo à minha frente, sem perceber o que eu estava sentindo. Essa terceira sensação vibrava forte e eu sabia que isso era sinal de raiva. Contudo, havia muito mais que isso vindo dessa energia. Havia ódio puro, emanado de forma destruidora e escaldante. E havia poder. Um poder forte, agressivo e diferente do poder de todos os Escuros que já senti.
Ao mesmo tempo em que as vibrações atingiram seu insuportável ápice de aceitação, Enri gritou:
– Cuidado!
Mas sua advertência foi tarde demais.
A porta do quarto mais próximo ao nosso se abriu com estrépito e Enri foi arremessado no ar rodopiando em minha direção. Seu corpo bateu com um forte impacto em mim e nós dois voamos de volta à sala de estar, detonando tudo o que havia pela frente. O sofá arrastou-se alguns metros e a mesinha de centro que havia ali ficou reduzida a pedaços.
 Usando nossa agilidade sobrenatural, colocamo-nos de pé rapidamente. Olhei para Enri. Ele tinha um filete de sangue negro brotando do lábio inferior.
Então pude ver os responsáveis por aquela vibração. Ou melhor. As responsáveis. Do corredor dos quartos saíram duas garotas. Uma delas era a criatura feminina mais bela que já havia visto entre nós. Possuía cabelos tão lisos e de um loiro tão claro que pele e cabelo pareciam ser uma coisa só. Seus olhos eram feitos de um lilás claríssimo e dotados de um brilho hipnótico fora de série. Uma noturna. Ela vestia uma blusinha, um jeans justo e uma bota de cano longo por cima da calça, todos negros.
– Giovanna! – bradou Enri expondo suas presas afiadas e maiores. Eu olhava aqueles dois sem entender.
Seus olhos passaram de esverdeados a vermelhos em segundos. Parecia que suas pupilas estavam injetadas de sangue.
Sem rodeios, a vampira de nome Giovanna avançou com sua velocidade sobrenatural para cima de Enri. Ele não pôde se esquivar a tempo e recebeu um golpe que o fez voar mais alguns metros e cair no chão novamente.
Corri na direção dela para impedi-la (ou rasgá-la em pedaços se fosse preciso), todavia fui impedido por outra noturna, que me deu uma gravata no pescoço. Empreguei minha força sobre-humana para me livrar dela, mas ela possuía mais força que eu. Não conseguia removê-la nem um milímetro.
Enquanto isso olhava para Enri, que estava de pé mais uma vez. Giovanna correu novamente para cima dele somente com o peso do corpo, sem poderes. Felizmente, ele foi mais rápido que ela. Ele saltou no ar e projetou um chute giratório que a acertou em cheio no rosto. O corpo dela rodopiou várias vezes e destruiu a mesa de jantar e o espelho, fazendo o maior barulho. Os cacos caíram todos em cima dela.
Com o descuido da noturna acertada por Enri, a que estava me segurando afrouxou um pouco o golpe. Sem perder tempo, projetei meu corpo para frente e arremessei a coitada, que voou por cima de mim. Porém, meu golpe não a pegou com tanta surpresa e como uma felina, ela caiu de pé sem fazer ruído.
Não havia vontade de fugir. Estava presente dentro de mim somente a vontade de matar. Quando esses instintos afloravam, eu tentava reprimí-los a todo o custo. Exceto em situações como essa, onde eles nos favorecem e nos garantem mais algumas noites de sobrevivência.
Giovanna se levantou do chão com o rosto salpicado de respingos negros. Seu rosto estava cortado em várias partes e o sangue havia esguichado. Fragmentos de espelho estavam enfiados pela pele da noturna.
– Meu Deus! – murmurei.
Em seguida algo aconteceu.
Os cacos enfiados em seu rosto e ombros começaram a ser expelidos e jogados para fora da carne. Os cortes foram ficando cada vez mais estreitos, fechando-se em seguida. Sua pele e carne tinham se regenerado por completo, devolvendo à vampira sua beleza sobrenatural. Os olhos de todos estavam vermelhos dentro do recinto, trazendo uma luminosidade rubra às paredes.
Encarei a vampira que havia me agarrado por trás. Ela tinha um visual gótico e era mais chamativa que Giovanna. Blusinha preta, coturno, meia-calça rasgada e micro saia. Os olhos estavam encobertos por uma maquiagem negra e pesada que contrastava com as pupilas vermelhas. Os cabelos eram ruivos, revoltos e tão vermelhos quanto os olhos. Percebendo meu interesse e expondo os dentes, ela disse ironicamente:
– Prazer. Meu nome é Letícia.
As duas noturnas pararam uma ao lado da outra, de braços cruzados, nos encarando. Elas sorriam para nós mostrando as presas afiadas e nos olhavam de um jeito malicioso através daquele brilho rubro das pupilas.
Em seguida elas simplesmente desapareceram bem na nossa cara.
– Será que usaram a rapidez? – questionou Enri mais pra si mesmo do que pra mim.
– Nã... – suspendi a resposta. Eu estava sentindo as vibrações delas sendo projetadas do mesmo local de onde elas estavam agora há pouco. Mas dizer isso revelaria meu dom secreto a ele.
Letícia e Giovanna se moveram novamente deslocando o ar e provocando com isso um estalo grave. Enri e eu fomos erguidos pelo ar, como se uma mão invisível estivesse segurando nossos pescoços. Depois ficaram visíveis novamente e pude perceber o tipo de poder que elas utilizavam. Algo diferente dos poderes que tinha visto em outros vampiros até então.
– O que vocês querem aqui, afinal de contas? – questionou Enri com certa dificuldade. Os pesados punhos oprimiam nossas traquéias e cordas vocais.
Giovanna deu uma risada antes de responder com sua voz grave e rouca.
– Não sabe Enri? Pois vou lhe contar. Um mortal foi assassinado de forma misteriosa dentro de uma danceteria, próximo da Bela Cintra. Nosso pessoal e alguns mortais que trabalham pra nós suspeitam de antemão que ele teve o sangue drenado do corpo, devido a polícia não ter encontrado nenhum vestígio no local do crime. Agora respondam: que tipo de sanguessuga que mora na Bela Cintra tem o costume de freqüentar esses buracos?
Eu engoli em seco depois desse comentário.
– Viemos somente dar um recado. – continuou Letícia, com uma voz irritante que mais parecia uma gralha louca. – Se um de vocês estiver envolvido nesse assassinato, os dois vão a julgamento. Tanto você como esse seu namoradinho aí! – terminou ela esticando o nariz para mim e sorrindo com deboche.
– Estaremos de olho em vocês! – sentenciou Giovanna.
Da mesma forma em que estávamos erguidos, caímos no chão. As duas simplesmente voaram janela afora e desapareceram. Pelas vibrações serenas e pela ingestão eminente de bebida, Rômulo dormia e nada havia escutado, apesar do barulho.
Enri estava estático sentado no piso laminado e olhava para a janela como que processando um pensamento. Sua energia emanou e alterou-se num grau dantesco. Com os olhos verdes brilhando em fúria, ele disse entredentes:
– Eu disse pra você! Olha o que a porra da sua atitude nos causou.
Focando em seus olhos de esmeralda e pelo impacto de suas palavras, senti o presságio de uma tempestade se aproximando. E havia carregado Enri comigo para o olho do furacão.

Continua...

Um desenho meu antes de continuar com BELOS E MALDITOS


Desenho meu feito com Paint e finalizado em Photoshop. Eu gosto muito do estilo mangá e de samurais. Me inspirei nessa cultura tão maravilhosa que é a japonesa.

Em breve mais BELOS E MALDITOS...

BELOS E MALDITOS - Prólogo




O garoto olhava para mim com aquele ar sapeca, de quem queria aprontar e fazer um milhão de coisas comigo. Eu retribuía o olhar da mesma forma em meio à fumaça e os estrobos. Talvez ele não conseguisse me enxergar direito por causa daqueles efeitos ambientais, entretanto eu conseguia distingui-lo totalmente em meio às pessoas que curtiam.
Ele era bonito, tinha os olhos azuis, pele branca e um cabelo legal, com um corte maneiro. Tinha uma franja meio que caindo pelos olhos, mas não tinha aquele estereotipo emo que as pessoas tanto confundem. A parte de trás da cabeça era parcialmente raspada e a franja agitava-se com os passos de dança meio tímidos. Ele estava bem vestido para mim, com uma calça skinny, camiseta em gola V e um discreto colete por cima. No pé, tênis de cano alto. Se quisesse poderia até distinguir as marcas das roupas.
Ainda me olhando, o garoto se aproximou e eu não tirei os olhos dele nem por um momento. Percebia as nuances e os cheiros dele se modificando conforme ele avançava. O cheiro dele era de sexo. Totalmente. Aquilo me inebriava e eu adorava essa sensação. O perfume que ele usava também era gostoso pra cacete. Tive que controlar meu desejo, por enquanto.
– E aí! Qual o seu nome? – a voz do menino também era bonita, apesar de forçá-la para parecer mais masculinizado.
– Nicholas. E o seu?
– Douglas, mas pode me chamar de Doug. E aí Nicholas, cê mora onde?
– Moro aqui perto e você?
– Moro na norte. Meio longinho né? – perguntou Doug rindo.
– Não, acho que não... já conheci gente que mora muito mais longe do que você, isso eu posso te garantir. Mas me conta o que você vem fazer aqui. Vem muito pra cá? – tentei fazer com que meu tom de voz demonstrasse interesse.
– Ah de repente venho pra cá pra conhecer meninos bonitos assim como você. – respondeu Doug com olhar malicioso.
Deixei o comentário no ar e enquanto fazia uns passos de dança, perguntei:
– Curte dançar?
Ele respondeu afirmativamente com a cabeça.
– Dança comigo então.
Ele tentou me imitar fazendo uns passos como o meu da mesma forma tímida de antes. Com o gelo do primeiro contato já parcialmente derretido, lacei o braço em sua cintura e o puxei pra perto de mim. Nossos rostos ficaram a centímetros de distância.
– Dança... comigo! – coloquei ênfase na última palavra para ele entender o que eu queria dizer. As vibrações mentais dele estavam a mil agora.
Algo entre suas pernas enrijeceu.
– Nossa! Como seus olhos são bonitos! Amendoados, né? – questionou Doug curioso, enquanto analisava as feições do meu rosto.
– É mais ou menos isso, mas de certa forma, sim. – respondi rindo.
– E onde você andou por todo esse tempo? Eu deveria ter encontrado você antes.
Esse menino era bem saidinho, mas isso acontece o tempo todo quando se deparam comigo. Deve ser por causa do magnetismo que minha espécie possui.
– Vixe, essa é uma longa história. Não vale a pena te contar de onde eu vim. – tentei soar cordial com a resposta, mas acredito que ele tenha captado a mensagem. Meus olhos saíram do foco perfeito de seu rosto como se eu estivesse vendo mais de uma cena ao mesmo tempo.
Doug passou a mão pelo meu rosto.
– Seu rosto é lindo. Você é pálido, mas mesmo assim parece um anjo feito por Deus.  
Até onde sei, os anjos são feitos por Deus, mas tudo bem. Questionei-me até onde o senso de humor dele podia ir.
– Erh...
Precisava agir rápido. Estava faminto e tinha pouco tempo até o nascer do sol.
Tasquei um beijo na boca dele para que se calasse. Meus lábios percorreram os lábios dele de forma contínua e firme. Enterrei as mãos e os dedos ansiosos na nuca dele enquanto comprimia seu corpo no meu. Ele emanou uma vibração de que estava gostando e achando estranho ao mesmo tempo. Ele deve ter achado meus lábios e dedos gelados demais. Bem, eu sou um cadáver ambulante e isso não podia ser diferente.
– Vamos lá para o canto. – sugeri erguendo uma sobrancelha.
– Olha que safado! – Doug me olhava admirado. Ele deve falar isso pra todos os caras que beija. Muito clichê.
Doug tomou a iniciativa de encontrar um local mais discreto dentro da danceteria, se é que isso era possível. Ela estava apinhada de gente pra lá e pra cá. Pessoas riam alto, bebiam, usavam substâncias alucinógenas e dançavam freneticamente na pista. Senti as vibrações corpóreas dos outros seres humanos como descargas elétricas acariciando meu corpo. Doug me conduzia pela mão sem nada disso perceber, mas pela forma como andava, parecia saber exatamente o que fazia.  E o que queria.
– Eu curti você, Nicholas.
– Eu também curti você, Doug.
Meus lábios roçaram a orelha dele e eu brincava com a língua, que deslizava pela linha do pescoço. Quando meus lábios tocaram a pele macia de sua garganta, na altura da jugular, Doug soltou um gemido, contido pela música alta. Ao mesmo tempo sentia a pulsação sanguínea dele. Meus caninos aumentaram de tamanho perigosamente. Podia senti-los despontando pela parte inferior da minha boca. Pontiagudos e afiados. Prontos para rasgar a carne e alcançar aquela veia principal.
De repente o DJ começou a tocar Rob Zombie e a galera foi ao delírio.
– Nick, vamos dançar, eu gosto dessa música.
– Não. Vamos ficar aqui. Tá mais gostoso. – respondi ao pé do ouvido.
– Vamos, vai!
Senti o corpo de Doug tentar me empurrar, porém sem sucesso. Quando percebi seu movimento usei minha força para segurá-lo. Ele tentou mais uma vez e depois mais outra, mas eu não saía do lugar. Suas atitudes eram infrutíferas.
– Você é meu, Doug. Pra sempre!
Ele não cedeu. Tentou me empurrar mais uma vez. Eu nem saí do lugar. Mesmo que cinco homens tentassem juntos, jamais conseguiriam me mover. A sua vibração corpórea mudou de excitação para receio instantaneamente.
– Ok, já chega. Me solta!
– Não vou soltar.
Ele se desvencilhou do meu abraço e olhou direto nos meus olhos. Ele percebeu a mudança de cores. Eles eram dourados. Agora estavam vermelhos. Percorreu os olhos pelo meu rosto pálido e percebeu os caninos protuberantes enquanto eu sorria de volta. Arregalou os olhos quando conseguiu enxergar a composição completa da morte rindo da cara dele.
Suas vibrações passaram do receio ao pânico absoluto. O cheiro do medo era um aroma doce para mim. E eu gostava de provocar isso nas pessoas. Alimentar-me delas enquanto dormiam era sem graça.
Percebi que em sua boca manifestava-se um grito de horror.
Eu usei a voz de comando.
Silêncio. Não dê nenhum piu.
O corpo dele tremia, entretanto nada podia fazer para me deter. Era como se fios encantados o prendessem como marionete. E eu era o ventríloquo, podendo comandá-lo como quisesse. A voz de comando domina a vítima totalmente, mas ela continua consciente do que acontece ao seu redor. Mais um truque que aprendi com Enri, meu criador. 
– Fique quieto e mova sua cabeça para o lado.
Automaticamente Doug obedeceu, apesar de lutar com todas as forças para retomar o controle.
Lambi seu pescoço e cravei os caninos nele procurando por sua jugular. Dois segundos de total agonia se passaram para ele até que eu rompesse a veia. Imediatamente o sangue jorrou em minha boca e eu ingeri cada jato que seu coração bombeava. Enquanto ele tremia com a dor, tremi junto curtindo esse prazer. Para nós é extremamente extasiante se alimentar de sangue fresco. É como um orgasmo longo e multiplicado. Doug era um garoto delicioso.
Retirei a boca do ferimento para arfar de êxtase. Doug estava pálido e suava, tremendo pelo choque do ataque. Foi perdendo as forças gradativamente e os espasmos cessaram por completo. As pessoas ao redor não perceberam nada.
– Você é meu, Doug. Para sempre.
Para sempre.
Carreguei o corpo leve de Doug até um canto escuro como se estivesse abraçado com ele. Se o carregasse como uma noiva no colo, ninguém notaria nada, visto que àquela altura do campeonato todas as pessoas estavam loucas, bêbadas ou jogadas pelos cantos do local. Encostei-o em uma parede escura e longe da luminosidade confusa dos estrobos. Algum segurança do local com certeza o encontraria quando começassem a limpar a bagunça.
Olhei no celular e vi que eram cinco e quinze da manhã. Em breve o sol nasceria e eu tinha de me apressar. Essa brincadeira já tinha ido longe demais. Limpei a boca com a manga da camisa retirando os restos de sangue que lá haviam ficado.
Peguei minha jaqueta na chapelaria. A funcionária do local olhava pra mim com aquele ar de “Ooooooh, que menino lindo”, mas eu não dei trela pra ela. Tirei o cartão magnético que servia de comanda das mãos dela de forma meio brusca, porém ela não pareceu se importar com esse gesto. Continuava com aquele olhar idiota em cima de mim. Eu a ignorei.
Saí andando rápido da balada, descendo a Frei Caneca. Meu destino era a Bela Cintra e eu queria cortar caminho cruzando a Augusta e a Haddock Lobo. A jaqueta e os cabelos farfalhavam com o rápido deslocamento do ar. Mesmo usando minha velocidade normal eu era mais rápido que os humanos. Mais ágil. Mais gracioso. Os gays presentes paravam para me olhar enquanto passava, até os acompanhados por outros caras. Entre brigas, xingos, música alta, gargalhadas e drogas, eu desviava dos transeuntes com pressa. Ainda sentia o estômago arder pedindo mais sangue.  Entretanto, não podia me entregar à sede de novo.
Olhei pro alto e vi a coloração do céu passando do negro ao violeta. Se eu não chegasse a tempo em casa, eu viraria lenda. Literalmente. Em alguns momentos estaria seguro da luz em meu quarto.
Ao dobrar a esquina, presenciei três homens no exato instante em que estavam tentando estuprar uma mulher. Eles sentiram minha presença e viraram, encarando-me dos pés à cabeça. A vítima deles estava jogada ao chão com as roupas um tanto rasgadas, apresentando um estado de resistência e violência. Olhei nos olhos de cada um em tom de desafio.
– Ora, ora, ora, o que temos aqui? Um belo garotinho indefeso. Aí Zezão, segura a vagabunda que enquanto isso a gente vai dar um trato nesse aqui.
O sol quase nascendo, eu com pressa e a sede ainda gritando dentro de mim.
É.
Realmente eu tava fodido mesmo. Lei de Murphy caindo sobre mim nesse instante. Ou será que era sobre esses homens? Bem, o destino prega peças cruéis em algumas pessoas. Mas nessa noite não seria em mim que o destino deitaria as mãos.
Zezão debruçou-se em cima da mulher segurando-a pelos ombros enquanto ela chorava e soluçava. Até daria pena se eu ainda fosse humano. Os outros dois caras vieram na minha direção.
– Fiquem onde estão. – minha voz soou grave e ecoou pela rua deserta.
– Hahaha. Ce acha mesmo que você assim magricelo pode com a gente? Cê viu o que a gente tá fazendo então a gente vai dá um jeito em você. – disse um dos homens exibindo um sorriso com dentes amarelos.
– Eu já disse. Fiquem onde estão.
O outro homem tirou um canivete retrátil do bolso e acionou a lâmina. Zezão olhava para mim com uma expressão de “esse cara já era”. O único som agora era o barulho de alguns pássaros piando e se agitando com o ar matinal ganhando cada vez mais intensidade e os soluços da mulher.
O cara do canivete avançou. Eu retesei as pernas. O que aconteceu a seguir foi muito rápido para a vista turva que a humana tinha. Depois de dois passos dados pelo homem, a única coisa que ela viu foi o mesmo instrumento de corte enfiado na garganta dele, na altura da traquéia. Eu usei minha velocidade vampiresca para pegá-lo desprevenido, retirei o canivete de sua mão e em um movimento giratório certeiro, cravei-o fundo em sua garganta. Ele percebeu que não conseguia mais respirar segundos depois, pois de sua boca escapava um gorgolejar. Ele estava se afogando no próprio sangue. O cheiro invadiu minhas narinas automaticamente, mas tive de me segurar e me concentrar naquela ação.
A mulher soltou um sonoro grito quando viu o homem despencando à sua frente com a expressão de afogamento e a faca enfiada no pescoço. Zezão soltou os ombros da mulher, vindo na minha direção em seguida. Ele ficou em dúvida se ajudava o moribundo ou se vinha me apanhar. Parecia não entender como no segundo seguinte seu colega estava mortalmente ferido. A mulher aproveitou a deixa e saiu correndo pela rua aos berros.
– Que porra você fez, moleque? – berrou o primeiro.
– Que merda é essa, mano? – veio o outro.
Os dois humanos praticamente correram na minha direção. Se eu fosse como eles, provavelmente eu correria rua acima, entretanto meus novos instintos me compeliam a fazer algo completamente diferente.
Atacar, morder, sugar, matar.
Movimentei-me mais rápido do que eles e no primeiro soquei brutalmente o lado direito do rosto. O barulho do maxilar e dos ossos de suas maças quebrando foi bem audível. Dentes voaram da boca e os lábios se cortaram em inúmeras partes, vertendo uma grande quantidade de sangue.
O segundo homem presenciou o amigo caindo e correndo em minha direção não me viu mais em sua frente. Num novo movimento sobrenatural, parei por trás dele segurando sua cabeça. Uma de minhas mãos fez apoio em seu queixo e a outra ficou na parte superior do crânio. Fiz um forte solavanco. Foi possível ouvir um estalo grave quando o osso se partiu. O corpo do pobre homem caiu estatelado no chão.
Peguei o cara que havia sobrado pelos colarinhos e enterrei as presas em seu pescoço arrancando dele os últimos suspiros e arquejos. O sangue não era puro; havia substâncias em sua corrente, inseridas ali pelo orifício no braço e o conseqüente hematoma na pele. Pelo menos pude satisfazer aquela queimação maldita.  Rapidamente analisei o cenário em volta. Os três homens estavam mortos. A mulher havia fugido. Não conseguiria limpar a bagunça a tempo.
Corri o mais rápido que pude usando a velocidade vampiresca ao meu favor. Praticamente voei pelo caminho, pois estava completamente abastecido de sangue. Por isso, usar meus poderes no máximo não me deixaria fraco agora. O céu ficou tingido de azul turquesa. Logo o sol despontaria no horizonte. Cheguei à Bela Cintra. Havia alguns prédios para me proteger dos mortais raios de sol. Entretanto, minha pele ardeu com a mudança de temperatura. O céu ficou mais claro e a intensidade da ardência aumentou. A dor era parecida com insolação de terceiro grau. Vi a fachada do prédio. Estava muito próxima agora. O portão estava fechado. Dei impulso e saltei, passando por cima da grade. O porteiro nem notou, concentrado na tela de uma diminuta TV. Passei pelo hall aberto e entrei no hall coberto do luxuoso edifício. O elevador estava no térreo. Entrei e apertei o 15° andar. Estava à salvo. Sobreviveria a mais uma noite.

Continua...