O Encontro
Senti
uma vibração estranha ao abrir os olhos. Havia alguém tenso num cômodo próximo
ao meu quarto. Ondas parecendo chibatas deslizavam pela minha pele. Saí debaixo
da cama e me aprumei. Apesar de ter um belo quarto, com vários aparatos
tecnológicos modernos, não usava a cama como as pessoas usam. Nós, Escuros, tínhamos a mania de dormir em
locais apertados, com os braços cruzados no peito. Meu local predileto era
embaixo da cama.
Olhei-me
no espelho. Os olhos amendoados, a pele branca era como leite e os lábios
levemente rosados estavam lá. Analisei aquele rosto como se não fosse o meu.
Ousei temer um dia não ser mais tão belo como agora, mas lembrei-me que era uma
criatura da qual o tempo não poderia mais tocar.
Saí
do quarto só de cuecas exibindo o corpo rígido e os músculos definidos. Ao
entrar na sala vi um anjo no sofá. Tão branco quanto eu. Com as mãos cruzadas
na altura do queixo. Ar de preocupação. Só de calças. A tatuagem do peito à
mostra. Os cabelos ondulados e escuros caindo sobre os olhos. As vibrações que sentia
vinham dele.
Enri,
meu criador.
– Eu me lembro. Eu pedi a você. Eu
ordenei a você. – murmurou ele com a as mãos sobre a boca. As vibrações ficaram
mais intensas como se realmente quisessem me chicotear. Ele nem sabia da
existência desse meu dom e sentia que não devia compartilhar isso com ele, por
mais que ferisse meu coração.
Continuei com os olhos pregados
nele tentando compreender o que ele disse. Uma das características de Enri é
que ele falava algumas coisas em enigmas e eu demorava certo tempo para
entender.
– Do que você está falando? – questionei.
– Eu pedi a você, Nicholas. E você
me desobedeceu. – ele levantou o rosto e seus olhos de um verde hipnótico e
claro pairaram sobre os meus. – Você ainda vai colocar nossa espécie em risco.
O olhar dele era tão profundo que
fazia o chão que eu pisava esfarelar.
– Desculpe... não sei do que está
fal... – antes de terminar a frase eu havia compreendido.
Compreendi porque ele agora
vociferava as palavras na minha cara. A saliva dele atingia meus poros. Ele
havia usado sua velocidade sobrenatural e foi tão rápido que o ar fez um ruído
agudo ao ser deslocado.
– EU PEDI MAIS DE MIL VEZES PRA
VOCÊ NÃO CAÇAR PRÓXIMO DE ONDE NOS ESCONDEMOS! E VOCÊ ME DESOBEDECEU!
Inutilmente eu tentava apartar
aquela sensação de aperto dentro do peito com as mãos estendidas, pedindo para
ele parar com aquilo. Fazia aquele gesto como se quisesse me proteger de suas
palavras ou de sua ira.
– Mas... como você soube disso? –
perguntei tentando adivinhar como ele havia descoberto.
– O mundo inteiro sabe! – ele
apontou para a TV de plasma logo à frente do sofá – Dê uma olhada você mesmo.
Foquei a enorme TV à nossa frente e
senti meu coração despencar e voltar ao lugar. A voz do âncora do telejornal
narrava imagens de policiais em frente à uma casa noturna, com seguranças
alvoroçados correndo pra lá e pra cá tentando acalmar a multidão que saía
correndo porta afora. A casa noturna onde eu estivera na noite passada. Depois
apareceu um close de um garoto de olhos azuis. Na reportagem mencionaram que
ele simplesmente havia sido assassinado dentro da danceteria com ferimentos na
região da jugular. Não havia sangue no local do crime.
Douglas. O cara que eu matei.
Enri parecia mais calmo.
– Eu falei que pra sermos discretos
Nicholas. Temos de caçar pessoas que não farão falta pra ninguém. Bandidos,
drogados, mendigos, putas, gente solitária. Essa laia. Porque você matou um
cara dentro de uma balada aqui perto?
– Enri, como você sabe que quem
matou esse cara fui eu? – questionei em tom de desafio.
– Primeiro, você está bem
alimentado. Está até corado. Segundo, não existem outros Escuros que morem aqui
perto, a não ser eu e você. Ontem eu estava aqui e não precisei me alimentar.
Terceiro, você não sabe mentir. Deu pra ver nos seus olhos quando você viu a
reportagem.
Pronto.
Ele tinha descoberto. Enri era bem
esperto e observador. Observador demais pro meu gosto. Tinha visto até que eu
estava corado. Nem eu havia percebido isso. Sinal de que precisava ficar mais
atento.
– Tudo bem. – ele disse mudando seu
tom de voz – Vamos passar a agir de forma mais discreta, tá legal? Isso não
pode mais acontecer, ok?
Senti as vibrações dele se
acalmando e me convidando para me atirar em seus braços.
Ele se sentou novamente no sofá e agilmente
corri e me estirei com ele. O cheiro doce dele invadiu minhas narinas e aspirei
aquele aroma maravilhoso como se fosse a primeira vez que sentia sua fragrância.
Ficamos daquele jeito um tempo até eu quebrar o silêncio.
– Tá pensando em quê? – perguntei.
– Em como você caçou aquele cara
que matou.
– Quer saber como foi? – meus olhos
encontraram os dele.
– Sim. – respondeu ele afagando
meus cabelos revoltos e repicados.
– Queria caçar um menino branco e
de olhos azuis. Fui àquele lugar porque sabia que encontraria alguém com essas
características facilmente. Apesar de todos os caras da balada ficarem olhando
pra mim, foquei em um que possuía o que eu desejava e era do jeito que havia
imaginado.
Os olhos de Enri brilhavam de
satisfação. Continuei.
– Daí um me chamou a atenção. Não
demorou muito e ele já estava olhando pra mim. Ficamos nos olhando na pista e
ele se aproximou.
– Nossa, ele teve coragem então! –
espantou-se Enri. – Mesmo que os mortais tenham fascínio por nós, algo dentro
deles diz para não se aproximarem mais. Acho que é o instinto de
autopreservação. De alguma forma, se chegarem mais perto sempre correrão risco
de morte. Mas me diga o que aconteceu a seguir. – Enri me olhou de forma
maliciosa e passou o polegar pelo meu queixo.
– Bem, daí usei o artifício da
sedução. Eu o beijei.
Enri revirou os olhos.
– Ah, você precisa sempre fazer
dessa forma quando caça? Porque não pode simplesmente chegar e morder? – senti
uma onda tensa emanando de seu corpo.
– Hellooo! Eu tava na balada! Como eu ia morder alguém assim com um
monte de gente em volta.
– Mano, ninguém ia perceber! Era só
chegar e pronto.
– Ai meu que saco você hein. A
gente não pode ficar em paz por um momento sem que você tenha ciúmes de tudo o
que eu faço? – o tom da minha voz era para sentenciar essa discussão imbecil.
Enri ponderou sobre o que disse. As
vibrações que sentia mudaram novamente, demonstrando arrependimento com o
comentário feito.
– Tá legal... você tem razão –
disse ele fazendo um biquinho. – Desculpe. E desculpe por ter berrado com você
agora.
Beijei seus lábios finos pela
enésima vez.
– Nick, to com fome. Preciso sair
pra caçar. Quer me acompanhar?
– Não, me alimentei ontem, lembra?
– respondi com certa ironia na voz.
– Mesmo assim. Venha pelo menos me
fazer companhia.
Agora foi a minha vez de revirar os
olhos.
– Tá bem, tá bem! Vou colocar uma
roupa.
– Nada muito “cheguei”, tá? –
brincou Enri.
– Olha só quem fala! – retruquei. –
Ah! Esqueci de uma coisa. Mesmo que meu coração não bata mais, ele é todo seu.
Não se esqueça.
Voltei correndo para o quarto
largando um Enri com os olhos brilhando de emoção.
***
Meia hora depois estávamos no alto
do prédio onde morávamos. Enri havia pensado em visitar e se alimentar de uma
pessoa que possuía altos recursos financeiros. Ele conhecia um jovem e órfão
milionário chamado Rômulo Sperandeo. Seus pais foram viajar para Angra dos
Reis, mas na ocasião Rômulo recusou o convite. E por conta disso sobreviveu ao
trágico acidente de helicóptero que vitimou sua família. Como seu pai havia
deixado tudo para ele em um testamento antecipado, Rômulo herdou toda a
fortuna.
Uma história triste, por assim
dizer. Entretanto, Enri disse que queria
sugar sangue nobre. Desde a morte de seus pais, Rômulo, que havia conhecido
Enri uma noite em um bar, tornara-se doador, uma pessoa que conhece a
existência de vampiros e se oferece como alimento aos Escuros. Ele havia
comentado comigo uma vez sobre esse cara e tinha dito que um de seus maiores
desejos era se tornar imortal pra ver se sua dor era amenizada. Havia me dito
também que não teria problemas em beber dele, uma vez que nesse caso não havia
mortes.
– Você sabe onde ele mora? –
questionei com as mãos nos bolsos da calça preta.
– Sim, Nick. Estou só avaliando as
possibilidades. Não sei se seria melhor pegarmos ele em casa ou no bar onde
costuma encher a cara. Desde que seus pais morreram, ele torra a grana com
bebidas. É um alcoólatra. E uma vergonha para os pais que devem estar se
revirando na cova.
– Nossa! Você é bem insensível de
vez em quando! – respondi.
– Haha! De vez em quando? Você sabe que sou
completamente desumano. Desprovido de qualquer sentimento mesquinho. A não ser
por você.
Eu revirei os olhos.
Ficamos em silêncio algum tempo
enquanto o vento lambia nossos casacos e cabelos. O uso de roupas mais pesadas
era somente uma questão de bom-senso entre os mortais, visto que vampiros não
sentem variações de temperatura de forma tão direta quanto seres humanos.
Enri olhava os prédios logo abaixo
e analisava com calma os movimentos da cidade. As luzes eram fortes e vibrantes.
Víamos tudo com exatidão. Olhei em seus olhos e percebi que ele estava fazendo
algo que eu gostava. Ele estava apurando a visão para enxergar além do que a
visão humana consegue ver. Inflava o ar da noite, que chegava gostoso em nossas
narinas desenvolvidas, sentindo e apreciando os aromas que o vento trazia.
Ele agia como um perfeito predador.
– Vamos? – perguntou Enri com um
meio sorriso.
– Pra onde?
– Daremos um pulo na casa dele só
para ter certeza. Talvez ele esteja no bar de novo, mas não custa conferir.
– Certo, então vamos descer e
caminhar.
– Quem disse que vamos caminhando?
Vamos fazer um caminho muito mais fácil. Nós vamos por cima.
– Por cima? Como assim?
– Saltando, oras! – respondeu ele erguendo
os braços.
Fiquei imaginando os tipos de
saltos que faríamos e ao olhar para o parapeito do edifício, eu entendi. E
fiquei com receio.
– Você não me ensinou a saltar! –
indaguei.
– Pelo que sei você salta muito
bem. Lembro-me de você saltando no começo. Isso vai ser fácil.
– Sim, quando saltamos daquela vez
em que caçamos pulamos somente um sobrado. Estamos num prédio muito grande
dessa vez.
– Querido, nós vamos saltar de um
prédio para outro. Pensou que íamos nos jogar ao chão? Que besteira. Mesmo que
a gente não morra, seria uma queda feia. Vários ossos quebrados.
Eu não estava afim de me quebrar. É
chato colocar os ossos no lugar e é necessário o consumo de muito sangue pra
realizar essa proeza.
Enri colocou seu braço em minha
cintura e farejou de leve meu pescoço.
– Vem! Eu ajudo você na primeira
vez.
Estávamos na ponta. Engoli em seco
ao olhar para baixo, na borda do topo. Com a visão normal, via as pessoas como
se fossem formigas. Os carros passavam nas ruas parecendo besouros em linha
reta.
– Preparar... – Enri curvou as
pernas.
– Tem certeza, meu? – estava com
medo.
– Flexionar... – Enri dobrou ainda
mais os joelhos.
– Sério, não quero mais ir! –
estava em pânico.
– Saltar! – Enri deu impulso e
saltamos.
Enri deve ter ficado
permanentemente lesado do ouvido direito. Dei um berro tão alto que espantaria
até as nuvens do céu.
Contudo, a sensação foi
indescritivelmente fantástica.
Quando Enri deu o impulso, fomos
içados num movimento uniforme e simétrico. Agarrei-me em seu corpo, mas éramos
tão leves que parecíamos caminhar em pleno ar. Olhei rapidamente para baixo e
me deu frio na barriga vendo tudo passar rápido daquela forma. De repente,
começamos a despencar. Eu entrei em pânico e minhas unhas cravaram na pele
dele. O ar deslocou-se e parecíamos estar dentro de um vendaval, tamanha a
velocidade. Entretanto, no segundo seguinte, estávamos em solo seguro novamente
como se nada tivesse acontecido.
– Uau!? – exclamei arfando. – Que
coisa mais... incrível!
Apesar do pânico inicial, a
sensação seguinte foi maravilhosa.
– Meu, não tem segredo. Você
aprende rápido! É inteligente e corajoso. Tenho certeza de que vai aprender
mais e mais. Sair-se-á muito bem, com certeza! – mencionou Enri entusiasmado
com minha reação, sorrindo e mostrando os caninos levemente pontudos.
Se meu corpo fosse vivo, teria
ficado vermelho de vergonha naquele instante. Sempre ficava muito sem graça com
elogios. Devido o salto eu ainda tremia levemente como se tivesse adrenalina
injetada na corrente sanguínea.
Enri passou por mim em direção à
borda do prédio onde estávamos.
– Chegue mais perto, Nick. Agora eu
vou fazer sozinho e você observa. É só olhar onde quer saltar e desejar. O
corpo faz o resto. É bem simples. É como usar a voz de comando.
– Tudo bem. – respondi um tanto
inseguro.
Enri olhou para o prédio seguinte,
flexionou as pernas e saltou. A visão foi fantástica. Enri deu um salto
estupendo, balançando as pernas com graça. Seu casaco farfalhou sonoramente com
o vento no trajeto. Pousou leve como um gato na borda seguinte. Aprumou-se e
gesticulou para que eu fosse também.
Pensei da forma como ele havia ensinado.
Olhei para onde queria que meu corpo mágico me levasse e desejei. Flexionei as
pernas como o havia visto fazer e impulsionei.
A mesma sensação do primeiro salto
me invadiu. Porém, agora tive a sensação de liberdade absoluta, pois
instintivamente repetia os mesmos movimentos do meu criador. Eu literalmente
voava em direção à borda seguinte, com o vento chacoalhando e desgrenhando
ainda mais os meus cabelos. O frio dentro da barriga era tão maravilhoso que
por mim poderia me locomover sempre dessa forma. Não imaginava que possuía uma
força tão grande nas pernas também.
A partir daí passamos a saltar
individualmente. Sentia que do corpo de Enri emanavam vibrações de satisfação
para comigo. Ele estava orgulhoso de mim, mas não era necessário o uso desse
talento para notar. Isso era visível em seus olhos.
Depois de mais uns saltos, paramos
em cima de um prédio.
– Veja, Nick. O edifício é aquele.
À nossa frente, estava o prédio
onde Rômulo morava. Enri ergueu a mão e apontou para uma sacada acesa.
– Observe. Milagrosamente ele está
em casa hoje. – lançou ele ironicamente.
Fiquei observando o edifício na
direção em que Enri apontava. O projeto arquitetônico era muito bem feito.
Haviam detalhes incrustados no concreto, como linhas e figuras sem intenção.
Eram formas abstratas que corriam de lá pra cá, num ziguezague planejado. Com certeza quem morasse no edifício possuía
vastos recursos financeiros. Não somente esse prédio em si, mas o bairro todo
era único. Diferente dos demais. Percebi que tínhamos saído dos Jardins, entretanto
estávamos ainda na região nobre do centro de São Paulo.
– Sinto cheiro de bebida. –
mencionei.
– Exato! – disse Enri com um meio
sorriso, destacando uma covinha existente no rosto. – Neste exato momento ele
está bebendo.
Enri estendeu sua mão pálida em
minha direção. Seu olhar verde estava mais claro apesar da escuridão da noite.
– Vamos juntos dessa vez. – disse.
Segurei sua mão e da borda do
último edifício saltamos diretamente para a sacada. Claro que o salto foi
perfeito, visto que estava sendo segurado por ele. Pousamos no parapeito.
Pensei que de repente me desequilibraria, contudo ter um corpo vampiresco tem
suas propriedades mágicas e isso não aconteceu.
Leves como plumas. Fortes como aço.
Mais um pequeno salto nos fez
entrar no terraço. Agora estávamos de frente para a grande janela que o
separava do living. Enri colocou sua
mão no vidro da janela e a porta deslizou calmamente para o lado. O cheiro de
uísque ficou mais forte quando o ar quente do interior do cômodo nos alcançou.
– Sinta o cheiro forte. Ele bebe
demais! – sussurrou Enri. Sua voz era
inaudível para humanos, não para mim.
Assenti com a cabeça e entramos no living.
O local era grande, bonito e bem
decorado. Havia móveis planejados espalhados pelo apartamento, mas as condições
do mesmo estavam começando a ficar precárias. Havia poeira por cima das coisas
e pelo chão. Peças de roupas masculinas (que provavelmente pertenciam a Rômulo)
estavam espalhadas por cima de um grande sofá em formato L. Vagarosamente andei
pela ampla sala, passando pela sala de jantar. Apesar de termos corpos físicos,
nossos movimentos eram silenciosos. Ali, um espelho fazia a vez de parede e
puder ver nossos reflexos. Estávamos mortalmente belos, como se o vento não
tivesse nem sequer nos acariciado. O cheiro da bebida intensificou-se quando
alcancei um corredor com várias portas. Imaginei quem da família de Rômulo
dormia em qual quarto.
Uma música melancólica começou a
ecoar pelo local. Fiquei apreensivo, porém reconheci aquela melodia que me
tocou aos poucos. Seu nome estava arquivado em algum local distante e brumoso
da minha memória, entretanto recordei-me. Rômulo ouvia Sonata ao Luar de Bethoween. Comecei a sentir ondas frias
de vibração. Ele emanava algo diferente do que já havia sentido. Era algo lento,
denso e gelado. Entretanto, pela música e por aparente estado de espírito,
imaginei que aquilo fosse sinal de depressão.
Era difícil descrever a segunda
sensação que as vibrações de Rômulo emitiam. Era uma coisa corrosiva e morna.
Era como se fosse rancor ou mágoa. Algo contido dentro de um coração machucado
e vitimado por um causo da vida, por uma tragédia. Estava sentindo muita pena
dele naquele momento.
A terceira sensação me deixou
apreensivo e estaquei. Essas vibrações não vinham de Rômulo. Nem de Enri. Muito
menos de mim.
Parei e prestei atenção, tendo um
Enri se movimentando logo à minha frente, sem perceber o que eu estava
sentindo. Essa terceira sensação vibrava forte e eu sabia que isso era sinal de
raiva. Contudo, havia muito mais que isso vindo dessa energia. Havia ódio puro,
emanado de forma destruidora e escaldante. E havia poder. Um poder forte,
agressivo e diferente do poder de todos os Escuros que já senti.
Ao mesmo tempo em que as vibrações
atingiram seu insuportável ápice de aceitação, Enri gritou:
– Cuidado!
Mas sua advertência foi tarde
demais.
A porta do quarto mais próximo ao
nosso se abriu com estrépito e Enri foi arremessado no ar rodopiando em minha
direção. Seu corpo bateu com um forte impacto em mim e nós dois voamos de volta
à sala de estar, detonando tudo o que havia pela frente. O sofá arrastou-se
alguns metros e a mesinha de centro que havia ali ficou reduzida a pedaços.
Usando nossa agilidade sobrenatural,
colocamo-nos de pé rapidamente. Olhei para Enri. Ele tinha um filete de sangue
negro brotando do lábio inferior.
Então pude ver os responsáveis por
aquela vibração. Ou melhor. As responsáveis. Do corredor dos quartos saíram
duas garotas. Uma delas era a criatura feminina mais bela que já havia visto
entre nós. Possuía cabelos tão lisos e de um loiro tão claro que pele e cabelo
pareciam ser uma coisa só. Seus olhos eram feitos de um lilás claríssimo e
dotados de um brilho hipnótico fora de série. Uma noturna. Ela vestia uma
blusinha, um jeans justo e uma bota
de cano longo por cima da calça, todos negros.
– Giovanna! – bradou Enri expondo
suas presas afiadas e maiores. Eu olhava aqueles dois sem entender.
Seus olhos passaram de esverdeados
a vermelhos em segundos. Parecia que suas pupilas estavam injetadas de sangue.
Sem rodeios, a vampira de nome
Giovanna avançou com sua velocidade sobrenatural para cima de Enri. Ele não pôde
se esquivar a tempo e recebeu um golpe que o fez voar mais alguns metros e cair
no chão novamente.
Corri na direção dela para
impedi-la (ou rasgá-la em pedaços se fosse preciso), todavia fui impedido por
outra noturna, que me deu uma gravata no pescoço. Empreguei minha força
sobre-humana para me livrar dela, mas ela possuía mais força que eu. Não
conseguia removê-la nem um milímetro.
Enquanto isso olhava para Enri, que
estava de pé mais uma vez. Giovanna correu novamente para cima dele somente com
o peso do corpo, sem poderes. Felizmente, ele foi mais rápido que ela. Ele
saltou no ar e projetou um chute giratório que a acertou em cheio no rosto. O corpo
dela rodopiou várias vezes e destruiu a mesa de jantar e o espelho, fazendo o
maior barulho. Os cacos caíram todos em cima dela.
Com o descuido da noturna acertada
por Enri, a que estava me segurando afrouxou um pouco o golpe. Sem perder
tempo, projetei meu corpo para frente e arremessei a coitada, que voou por cima
de mim. Porém, meu golpe não a pegou com tanta surpresa e como uma felina, ela caiu
de pé sem fazer ruído.
Não havia vontade de fugir. Estava
presente dentro de mim somente a vontade de matar. Quando esses instintos
afloravam, eu tentava reprimí-los a todo o custo. Exceto em situações como
essa, onde eles nos favorecem e nos garantem mais algumas noites de
sobrevivência.
Giovanna se levantou do chão com o
rosto salpicado de respingos negros. Seu rosto estava cortado em várias partes
e o sangue havia esguichado. Fragmentos de espelho estavam enfiados pela pele
da noturna.
– Meu Deus! – murmurei.
Em seguida algo aconteceu.
Os cacos enfiados em seu rosto e
ombros começaram a ser expelidos e jogados para fora da carne. Os cortes foram
ficando cada vez mais estreitos, fechando-se em seguida. Sua pele e carne tinham
se regenerado por completo, devolvendo à vampira sua beleza sobrenatural. Os
olhos de todos estavam vermelhos dentro do recinto, trazendo uma luminosidade
rubra às paredes.
Encarei a vampira que havia me
agarrado por trás. Ela tinha um visual gótico e era mais chamativa que Giovanna.
Blusinha preta, coturno, meia-calça rasgada e micro saia. Os olhos estavam
encobertos por uma maquiagem negra e pesada que contrastava com as pupilas
vermelhas. Os cabelos eram ruivos, revoltos e tão vermelhos quanto os olhos.
Percebendo meu interesse e expondo os dentes, ela disse ironicamente:
– Prazer. Meu nome é Letícia.
As duas noturnas pararam uma ao
lado da outra, de braços cruzados, nos encarando. Elas sorriam para nós
mostrando as presas afiadas e nos olhavam de um jeito malicioso através daquele
brilho rubro das pupilas.
Em seguida elas simplesmente
desapareceram bem na nossa cara.
– Será que usaram a rapidez? –
questionou Enri mais pra si mesmo do que pra mim.
– Nã... – suspendi a resposta. Eu
estava sentindo as vibrações delas sendo projetadas do mesmo local de onde elas
estavam agora há pouco. Mas dizer isso revelaria meu dom secreto a ele.
Letícia e Giovanna se moveram
novamente deslocando o ar e provocando com isso um estalo grave. Enri e eu
fomos erguidos pelo ar, como se uma mão invisível estivesse segurando nossos
pescoços. Depois ficaram visíveis novamente e pude perceber o tipo de poder que
elas utilizavam. Algo diferente dos poderes que tinha visto em outros vampiros
até então.
– O que vocês querem aqui, afinal
de contas? – questionou Enri com certa dificuldade. Os pesados punhos oprimiam
nossas traquéias e cordas vocais.
Giovanna deu uma risada antes de
responder com sua voz grave e rouca.
– Não sabe Enri? Pois vou lhe
contar. Um mortal foi assassinado de forma misteriosa dentro de uma danceteria,
próximo da Bela Cintra. Nosso pessoal e alguns mortais que trabalham pra nós
suspeitam de antemão que ele teve o sangue drenado do corpo, devido a polícia
não ter encontrado nenhum vestígio no local do crime. Agora respondam: que tipo
de sanguessuga que mora na Bela Cintra tem o costume de freqüentar esses
buracos?
Eu engoli em seco depois desse
comentário.
– Viemos somente dar um recado. –
continuou Letícia, com uma voz irritante que mais parecia uma gralha louca. –
Se um de vocês estiver envolvido nesse assassinato, os dois vão a julgamento.
Tanto você como esse seu namoradinho aí! – terminou ela esticando o nariz para
mim e sorrindo com deboche.
– Estaremos de olho em vocês! –
sentenciou Giovanna.
Da mesma forma em que estávamos
erguidos, caímos no chão. As duas simplesmente voaram janela afora e desapareceram.
Pelas vibrações serenas e pela ingestão eminente de bebida, Rômulo dormia e
nada havia escutado, apesar do barulho.
Enri estava estático sentado no
piso laminado e olhava para a janela como que processando um pensamento. Sua
energia emanou e alterou-se num grau dantesco. Com os olhos verdes brilhando em
fúria, ele disse entredentes:
– Eu disse pra você! Olha o que a
porra da sua atitude nos causou.
Focando em seus olhos de esmeralda
e pelo impacto de suas palavras, senti o presságio de uma tempestade se
aproximando. E havia carregado Enri comigo para o olho do furacão.
Continua...
