O Desabafo


Cansado.
Hoje em dia, mudar de opinião é como mudar de cueca. A cada dia se usa uma. O "sentir" então? Nada mais é do que uma palavra vazia! 
Hoje em dia, você não sente, nem se compadece. Um caos absoluto dominou esses meus parentes que habitam as pessoas. 
Primeiro, você quer fazer e acontecer e algumas pessoas se iludem, achando que você diz a verdade. Simplesmente, mudam de opinião e te deixam lá, enquanto a real intenção corrói todas as suas expectativas.
No fundo, gente assim não sabe o que quer. Vive perdida dentro de si mesma, tentando se encontrar, sem nunca achar o norte, pois a bússola está quebrada e talvez nem tenha mais conserto. 
Tenho pena.
Sempre estarão evitando o sofrimento, entretanto, nunca estarão vivendo, experimentando, arriscando. 
No final de suas vidas, estarão padecendo, olhando pra trás, chorando pelo leite que desperdiçaram.
Também tenho pena de mim mesmo. Caio nessa ladainha ilusória sempre. Qualquer gesto ou palavra de carinho, demonstração de sentimento ou afeto me deixa empolgado. 
Será que talvez seja a hora de começar a ser frio com as pessoas que me rodeiam também e não bater mais por elas? Sempre acreditei que irradiamos o que sentimos e, se eu fizer isso, afastarei as pessoas e não as terei perto de mim, como gosto.
Me sinto triste. Não sei o que há de errado comigo. Ou, saiba sim! É essa minha empolgação maldita! Chamo de maldita, pois não a consigo direcionar para coisas mais sublimes ou criativas. 
Quem sabe um dia, eu volte a bater com força, com calor e amor. Até lá, continuarei pulsando debilmente, para que minha casa continue viva. 

Atenciosamente,
Coração

BELOS & MALDITOS - Capítulo 4




A Majestade

Nicholas, antes de se tornar um Maldito.
A cena havia paralisado completamente, parecendo um filme, só que em câmera lenta. Os espectadores ao redor estacaram, sem conseguir produzir movimento algum, segurando até mesmo a respiração.
Em seguida, parecendo sair de um transe, as pessoas viraram as cabeças lentamente, encarando-me, forçando as vistas para poder ver melhor, já que possuíam a visão limitada por conta da ausência de luz diurna. ­
O cheiro do sangue era muito forte e não consegui voltar ao meu estado normal. Portanto, encarava os humanos com os olhos sanguíneos, rubros, na forma vampiresca dos mortos-vivos. Em resposta, houve repulsa por parte deles, impressionados com o fenômeno presenciado.
Primeiramente havia medo pairando no ar, mas era medo do desconhecido, do inédito. Só que depois esse medo deu lugar a outro tipo de temor. As lembranças das notícias circulando nos canais de comunicação deram vazão ao medo primitivo acerca das lendas e mitos de entretenimento contidos no universo dos vampiros. Medo de terem o sangue drenado dos corpos. Medo de serem caçados. Medo de serem mortos, como gazelas nas savanas. Todos os boatos, de repente, tornaram-se reais e estavam expostos ali. Havia um monstro sugador de sangue entre eles.
– Ele... isso... é um vampiro mesmo! – explanou a gorda, com o dedo roliço em riste.
– Esse garoto está apenas fantasiado de vampiro. Não vê que fazem isso por causa dessa onda de boatos que estão passando na televisão? – o velhote de óculos abria os braços enquanto falava. – Vejam bem, sabemos que os vampiros são pálidos e possuem a pele gélida, mas ele é tão humano e quente quanto nós e... – ele tocou meu rosto com a palma da mão direta, retirando-a logo em seguida, de supetão. – Meu Deus! Está tão gelado quanto um cadáver...
Os mais próximos de nós arregalaram os olhos, demonstrando total espanto com a exclamação proferida. Alguns arrepiaram-se dos pés a cabeça.
Foi possível ouvir o barulho de sirenes. A rua iluminou-se com a luz dos giroflex, banhando-nos de vermelho e azul, adicionando carga dramática àquela cena. Era possível ouvir coturnos estalando na calçada, vindo em nossa direção, e até mesmo a estática de um rádio, revelando que a polícia havia chegado e estava se aproximando de nós, Isso, com certeza, fruto de alguma denúncia.
– Então foi essa coisa quem matou esse homem no chão! Cristo, o pescoço dele está todo mordido, como um animal abatido! Isso não pode ficar impune! – sentenciou a garota de corte de cabelo moderno.
– Exatamente, vamos pegá-lo! – concordou a gorda, agarrando firme a bolsa, como se quisesse usá-la como arma.
Houve um burburinho de aprovação entre os humanos. Os olhares convergiam ódio. A energia ali se manifestou em uma só forma, todas direcionadas contra mim.
– Ele não pode contra todos nós!
– Essa coisa é um assassino. Vamos matá-lo antes que ele mate mais gente!
– Demorou!
Então, do meio da multidão, surgiu um brutamontes munido de um pedaço de pau com uma ponta afiada. Com um movimento rápido, feito da esquerda para direta em forma de arco, ele acertou-me em cheio no rosto. O impacto me pegou desprevenido, não sendo possível absorvê-lo por completo. Portanto, a pancada abriu um corte profundo em meu rosto, na altura da bochecha esquerda. Um grosso filete de sangue enegrecido escapou profusamente da ferida. Gritos de êxtase escaparam da boca da maioria dos presentes, como em um espetáculo de gladiadores romanos.
Fiquei totalmente incrédulo. Não pela dor física em si, e sim pela audácia daquela criatura ridícula, achando ser superior somente por ser forte e demonstrar mais coragem que os outros, comportando-se como uma espécie de macho alfa.
Encarei-o com uma fúria tão grande que ele, por um momento, perdeu a pose, recompondo-se em seguida.
– Atreva-se a fazer isso mais uma vez e arrancarei seu braço num único puxão, monte de carne. – murmurei com a face crispada, expondo os caninos afiados.
– Quero ver um franzino como você fazer isso! – ele avançou em novo movimento, dessa vez no sentido contrário.
Os humanos haviam fechado um círculo ao nosso redor. Aquilo parecia uma briga de escola. Mortais que se atrevem a desafiar vampiros quase sempre são destroçados, mas os casos sempre são abafados. O problema é que nem sempre domamos nossa natureza assassina e a situação estava indo longe demais. Estávamos sendo gravados com câmeras de celulares e outros dispositivos eletrônicos pelas pessoas ao redor.
O segundo golpe veio, entretanto, fui atencioso dessa vez, não dando chance para que ele me tocasse novamente. Aparei-o com a mão direita, segurando-o firme pelo pulso. Empreguei um pouco de força sobrenatural e apertei a munheca do homem, transformando o rosto dele em uma careta de dor. Usei minha força em sua totalidade e como quem arranca um graveto de uma planta, arranquei o braço num solavanco. A clavícula e o osso do ombro produziram um horrendo estalo grave ao serem partidos. Músculos, tendões e pele foram desfiados, mas resistiram ao puxão em algumas tiras e ficaram unidos ao tórax. O sangue esguichou do ferimento, atiçando-me ainda mais. Os urros de dor provocados pela minha manobra eram música para meus ouvidos. Os espectadores daquele espetáculo bizarro também soltaram gritos de horror e espanto porque jamais imaginariam presenciar uma cena daquelas. Ficaram mais embasbacados ainda quando viram, a olho nu, que o corte no meu rosto estava se fechando, com a carne e a pele juntando-se pouco a pouco.
Nesse ínterim, a polícia, que havia chegado, tentava conter o tumulto de pessoas que se acotovelavam ou corriam em debandada, perturbadas demais com o circo de horrores ali montado. Depois de algum esforço e algumas pancadas com cassetetes, conseguiu chegar ao vórtice do espetáculo.
– Que palhaçada é essa aqui? – questionou o policial, apontando o cassetete para o chão e segurando a coronha da arma com uma das mãos. Outro homem da lei surgiu logo atrás, sendo ele maior que o primeiro.
Todos começaram a falar ao mesmo tempo, transformando a situação em um inferno total. Ninguém ouvia ou entendia nada. Nitidamente, os policiais começaram a se irritar.
– Silêncio! – gritou o policial maior com voz potente de barítono. Os humanos calaram-se no mesmo instante, impressionados pelo berro. Depois disso, não se ouviu nem um pio.
– Você! – apontou para o velho de óculos. – O que está acontecendo aqui?
O homem aprumou-se todo antes de responder ao guarda.
– Um homem foi brutalmente assassinado aqui! Foi mordido várias vezes no pescoço e teve o sangue bebido. O que restou está espalhado pela calçada. – apontou para o cadáver, que já não era mais a atração principal naquele momento – Veja!
O guarda olhou por cima do ombro do velhote, demonstrando expressão de desdém. Aquilo parecia ser muito comum para ele.
– Por acaso vocês viram ou ouviram dizer quem foi? – indagou o policial, arqueando a sobrancelha.
– Bem... – hesitou – Certeza mesmo nós não temos, mas estão dizendo que esse homem foi morto por um vampiro! – o dedo do velho ficou suspenso na minha direção – Por aquele jovem. Ele é o tal vampiro que tanto falam na televisão.
Assim que disse isso, um novo burburinho se formou na multidão. Logo, transformou-se em algazarra, com todos falando ao mesmo tempo. Outras pessoas também apontaram os dedos na minha direção. Palavrões e outros impropérios foram proferidos. Ele tinha razão acerca de alguns fatos, mas não em todo o contexto. O homem que ali foi encontrado realmente foi sugado por um vampiro, mas não havia sido eu.
– Mas ele arrancou o braço desse cara apenas com um único puxão! – revelou outra pessoa próxima de nós – Olhe o senhor mesmo, policial!
Ainda com expressão de pouco caso, o policial olhou o sujeito grandalhão em meio ao próprio sangue, estirado no chão. Alguns humanos ali presentes estavam junto dele e outros, vestidos de branco, que haviam passado por ali naquele momento, prestavam os primeiros socorros, tentando estancar a hemorragia do ferimento e impedindo que ela se agravasse. Porém, mesmo com esses cuidados, ele estava mais pálido a cada minuto.
O policial virou-se e me encarou de forma patética, como que demonstrando estar perdido com a situação.
– O senhor terá que vir conosco! – em seguida, olhou para a multidão – E o resto de vocês, debandar! O IML vai trazer o carro pra buscar o morto e uma ambulância foi chamada para levar o homem sem braço ao hospital. Portanto, sigam suas vidas a partir de agora e nos deixem trabalhar.
Alguns ameaçaram protestar, porém, foram interrompidos por ele, que levantou a palma da mão direita em sinal de “basta”.
– Vamos cuidar desse aqui! – disse, apontando para mim – Venha, rapaz!
Fui escoltado até a viatura, mas o estranho é que não fui algemado e sim andando ao lado do guarda, como um amigo.
Adiantando-se, ele abriu a porta traseira do carro.
– Entre!
Olhei de relance para ele antes de entrar e as pupilas dele pareciam ser os de uma marionete, como que controlado, sem exercer as próprias vontades.
O outro guarda, até então sem dizer uma palavra, assumiu o volante, enquanto o que abriu a porta para mim travou-a do lado de fora e se sentou no banco do passageiro, na frente.
– Olá, Nicholas.
Tomei um baita susto quando olhei para a esquerda e vi alguém do meu lado, na escuridão do carro. As emanações energéticas eram bem conhecidas, mas não pude deixar de arregalar os olhos.
Era Enri.
Percebi uma vibração saindo da mente dele e penetrando diretamente no crânio dos guardas.
Dirija.
No mesmo instante, o policial deu partida no veículo, engatou a marcha e saiu em disparada, acionando o giroflex para que o trânsito não atrapalhasse o trajeto.
– Como você pode ver, hipnotizei a mente desses pobres humanos para nos tirarem daqui, já que, ultimamente, você tem predileção por arranjar encrenca. – Enri mencionava as palavras com uma pitada de ironia na voz.
– Como sabia que eu estava aqui, sendo que você deixou o apartamento antes de mim e Rômulo?
– Meu caro, eu apenas fui dar uma volta e arejar as ideia quando, de repente, senti um cheiro muito peculiar: o seu. – Enri me dava tapinhas na coxa para realçar o clima de ironia no qual queria chegar. – Logo, fui te seguindo. Quando senti o aroma de sangue no ar, resolvi agir prevendo uma possível confusão. E estava certo.
– E Rômulo? – questionei, revelando uma preocupação no tom de voz que não pretendia.
Revirando os olhos, o desmorto respondeu:
– Está em casa, oras. Bebendo uísque. Eu mesmo conferi antes de captar você.
– Tem certeza de que ele está bem?
– Sim, tirando aquele drama irritante ... – disse Enri, apoiando o queixo na mão esquerda.
– Tenho medo de que ele fique pior, um pouco traumatizado com essas coisas que estão acontecendo agora, sabe?
Era um misto de preocupação e carinho dentro de mim. Analisava meus sentimentos e sabia que nunca havia sentido algo igual por um humano antes. E, se tratando de características vampirescas, qualquer sentimento enraizado dentro de nós era amplificado, corroendo-nos além da capacidade humana.
– Não seja tolo! – os olhos verdes de Enri olhavam diretamente nos meus agora – nossa relação com Rômulo é puramente interesse. Ele é rico e, além disso, uma fonte de sangue para nós. Não sinto absolutamente nada por ele!
Baixei os olhos, querendo que meu criador não me encarasse mais. Ou queria que ele não lesse o que minhas expressões diziam quando falávamos do humano.
– E para onde vamos agora?
– Voltar ao nosso apartamento e fingir que nada disso ocorreu. Já temos problemas demais para nos preocuparmos. Vamos correr atrás de nossos interesses para sobrevivermos, está bem, Nicholas?
– Sim, meu pai! – respondi prontamente.
Decidi observar a paisagem noturna. Estávamos saindo do centro velho de São Paulo. Havíamos passado pelo Teatro Municipal, iluminado e com vários humanos na entrada. Uma peça peculiar estava em cartaz e as filas eram enormes. O tema era... vampiros. Devido à onda de histeria na internet, esse assunto era moda em todas as classes sociais. Era uma adaptação do livro Entrevista com o vampiro, de Anne Rice.
Continuei a olhar pela janela, inspirando fundo, sem a real necessidade disso. Adoraria saber como Enri se livraria dos problemas que causei e daquelas pessoas que me gravaram nas câmeras. Aquele material com certeza cairia no Youtube. Porém, de alguma forma, confiava nas manobras inteligentes dele, como meu criador. E decidi não abordar aquele assunto no momento.
Tudo era muito movimentado no centro velho. Vários estabelecimentos abertos e pessoas transitando. Só era uma pena que, sempre que tentava analisar melhor os detalhes, uma Blazer preta e de vidros escuros não saía da frente do nosso carro.
O retrovisor refletia um carro igual. À nossa frente havia outro. Na lateral esquerda, mais outro. Estávamos no meio de quatro carros iguais.
– Estamos cercados! – Enri indagou.
De repente, os quatro possantes emparelharam com o carro de polícia. O impacto do metal se chocando fez tudo balançar. Mesmo assim, os guardas continuavam dirigindo a toda velocidade, do jeito que podiam em plena Avenida São João.
Corra!
Enri havia usado seu poder mental novamente sobre o motorista, obrigando-o a forçar o corpo contra sua vontade mais uma vez. Os carros estavam em alta velocidade agora, cantando a borracha dos pneus no asfalto. Os motoristas da frente, percebendo a algazarra, desviavam os veículos, interpretando aquilo como uma perseguição policial, só que ao contrário, já que Blazers iam ao encalço de uma viatura.
Use a arma. Atire nos pneus!
O policial que estava no banco de passageiro, dominado pela hipnose vampiresca, desceu o vidro da janela e começou a atirar. Pessoas ouviram os disparos e gritaram, correndo ou se jogando no chão. Um novo pânico se instaurou nas ruas do centro. Então, uma das balas perfurou um pneu dianteiro. A roda, agora nua, entrou em atrito com o asfalto, produzindo uma chuva de faíscas. O ruído foi alto e irritante. A velocidade era tão alta! O dano fez a roda se soltar do eixo e o carro não resistiu. A lataria alcançou o chão e a Blazer capotou no meio da avenida, rodopiando diversas vezes até se estabilizar, caída de lado.
– Quem está atrás de nós, Enri?
– Os Patrulheiros! – gritou ele, naturalmente irritado pelo estresse.
– Quem?
– Os Patrulheiros! São elas, as Soturnas! São elas que formam os Patrulheiros.
– Mas de que diabos você está falando? Nunca ouvi falar disso! Você nunca me disse nada...
– CHEGA! Preciso pensar! Cale a sua boca de uma vez por todas! – os olhos de Enri estavam preenchidos de vermelho-sangue.
Por conta da discussão, o controle mental havia afrouxado. Os policiais dominados, por sua vez, estavam recobrando a consciência.
– Mas que diabos...
– Onde estou...
A Blazer localizada à esquerda do motorista veio com tudo e deu um encontrão na viatura. Foi tão forte, que o corpo do policial motorista foi esmigalhado. Sangue voou para todo lado. Os vidros se espatifaram em uma chuva de pontinhos brilhantes.
O mundo virou de ponta cabeça e voltou, repetindo esse ciclo infinitas vezes. A viatura estava capotando também. O policial armado voou para fora do veículo com o impacto, sendo arremessado por metros. A arma dele, porém, havia ficado no banco e com o chacoalhar insistente e rodopiante, disparou. Quando a bala acertou em cheio meu crânio, tudo ficou negro.



***




As pálpebras pesavam. Era difícil abrí-las, mas, com esforço, consegui. A visão estava embaçada, como quando se acorda de um sono profundo. Esfreguei os olhos e demorei até identificar a cor do teto, que era roxa. Analisei-a por um momento. Não era do tipo que se via sempre em catálogos de cores de tinta, entretanto, era muito bonita, denotando bom gosto.
Percebi, depois, que estava deitado em uma cama. Os lençóis eram macios. De cetim negro. Mais um vislumbre de requinte. O colchão, suave. Até imaginei que estivesse deitado sobre uma imensa nuvem negra, prestes a desabar em tempestade.
Vagarosamente, sentei, apreciando o restante do ambiente. Todos os móveis daquele local eram escuros, feitos em tabaco. O guarda-roupa, a cômoda, a cama, o abajur que iluminava as formas com uma luz levemente alaranjada, tudo. Além disso, eram bem modernos. Pareciam ter sido desenhados por designers conceituados. No canto direito, também, havia uma poltrona aparentemente confortável e, sentada nela, uma mulher.
Desloquei-me, agilmente, ao outro canto do cômodo, assustado.
– Você demorou a despertar. – disse ela, com uma voz grave. Os olhos azuis e gélidos não desgrudavam de mim.
Tinha de admitir: ela era linda. E, claro, uma noturna. A pele pálida, característica dos mortos-vivos, contrastava infinitamente com os cabelos, escuros como a noite. Era tão comprido, que estava amarrado em torno de si mesmo e caía pelo ombro direito, num rabo de cavalo que beirava a cintura. Veias negro-esverdeadas rodeavam o rosto perfeito da criatura. Desciam levemente pelo pescoço, que estava coberto por uma gargantilha preta com pedrinhas. O corpo, também divino, era emoldurado por um justo – porém discreto – vestido carmim. A maquiagem era simples e impactante, ao mesmo tempo. Apenas rímel nos olhos, destacando-os ainda mais e batom, no mesmo tom das roupas. Por fim, scarpans negros lhe compunham a postura ereta.
Pela reação do susto, meus olhos estavam vermelhos.
– Quem é você? – questionei.
– Meu nome é Anabelle. Fique tranquilo, Nicholas. Não vou lhe fazer mal.
– Como você sabe meu nome? – espantei-me, erguendo uma sobrancelha.
Em nenhum momento a vampira desviou os olhos dos meus.
– Nós sabemos de tudo, criança. – respondeu Anabelle, de forma enigmática.
Achei a resposta estranha demais. E a forma como ela a mencionou me arrepiou dos pés a cabeça. Não saberia dizer ao certo o porquê, mas acredito que era por sua forma profunda e completamente inumana de se expressar. A voz da desmorta era grave, dona de conhecimentos oriundos e inimagináveis.
– Vista-se. Em breve você será apresentado. – informou a noturna, dessa vez, descendo os olhos, como se estivesse me escaneando. Somente naquele momento percebi que estava sem roupas. O corpo delgado estava à mostra e a morta-viva o estava analisando.
– O que vou vestir? – questionei, sem jeito.
– No guarda-roupa encontrará trajes adequados. Não demore. – Anabelle levantou da poltrona ao terminar a frase. Ela parecia flutuar ao invés de andar, tamanha postura e destreza que emanavam dela. Colocou a mão de unhas bem feitas e pintadas num tom de café na maçaneta ornamentada. – Alguma dúvida?
– Sim... a quem serei apresentado?
– À Vossa Majestade. – disse, Anabelle, saindo e fechando a porta sem mais nada dizer.
Fiquei parado olhando para a porta por um tempo, digerindo aquela informação.
Majestade? Quem seria? E o que queria de mim? E Enri, onde estaria? Talvez em quarto vizinho ou em outro cômodo?
Bom... pelo lugar esplendoroso, deveria se alguém importante.
Ao abrir o guarda-roupa, me deparei com várias opções de vestuário, do moderno ao casual. Resolvi colocar uma camiseta gola V preta, tênis pretos de cano longo e um jeans lavado. 
Pelo tom de voz da vampira, precisava me apressar. Senti que o tempo estava urgindo.




***



Anabelle estava esperando do lado de fora do recinto quando saí. A postura continuava intacta e parecia mais uma estátua, de tão imóvel que estava ao me aguardar. Os olhos de gelo estavam fixos, admirando uma arandela em formato de dragão.
– Linda, não? – objetou.
E realmente era. Ricamente detalhada, sendo fiel até mesmo nos detalhes das escamas. Era construída em bronze. A lâmpada emitia uma luz amarelada.
Não havia só aquela. O longo corredor no qual nos encontrávamos estava repleto delas, conferindo luminosidade branda ao ambiente.
– Um mero capricho de Vossa Majestade, deveras. Afinal, seres como nós podem enxergar no escuro perfeitamente. – completou a vampira, ironicamente.
– Onde estamos? – questionei, demonstrando total curiosidade e aproveitando para ignorar o comentário feito.
– Estamos no que chamamos, entre nós, de Palácio, mas, em suma, é a residência da Majestade.
Interessante... ela não dizia o nome da entidade por trás do título de Majestade. A minha curiosidade estava aumentando cada vez mais para conhece-la. Quem seria?
Decidi arriscar:
– Afinal, qual o nome da Majestade?
– Tudo no seu tempo, criança. – respondeu a vampira apenas, sem parar de andar e nem me olhar nos olhos.
Mudei de tática:
– E em qual lugar de São Paulo estamos exatamente?
Anabelle parou de repente e me encarou profundamente nos olhos. Senti as emanações vibratórias dela e constatei que ela não era sempre do tipo comedida. Parecia que perdia a paciência rapidamente. E não é aconselhável estar perto de um vampiro impaciente.
– Tudo... no... seu... tempo! Agora... continuemos, sim?
Do mesmo modo que perdeu a compostura, a desmorta a recuperou rapidamente, como se aquele pequeno momento tenso não tivesse de fato ocorrido.
No final do corredor, passamos por uma porta dupla de madeira maciça e entalhada com formas geométricas. A maçaneta era idêntica à do quarto em que estava. E isso se aplicava a todos os portais ali existentes.
Em seguida, subimos uma escadaria de concreto aparente, dividida em dois lances. As paredes ao redor também eram revestidas do mesmo material. As arandelas de dragão continuavam aparecendo, porém, com intensidade reduzida. Entre os lances da escada, na divisão do corrimão, existia a escultura de uma gárgula. A face estava crispada e tinha dentes protuberantes. Como o dos vampiros. O olhar, sinistro e sem pupilas, parecia que me focalizava e virava a cabeça a cada passo escada acima. Porém, era apenas impressão... ou não...
Por fim, nos deparamos com outra porta dupla, também entalhada, gigantesca.
– Agora, criança, você conhecerá Vossa Majestade. Este é o grande salão.
Um frio me percorreu a espinha, de baixo para cima, entretanto, não manifestei reação alguma.
Anabelle forçou a maçaneta e abriu as portas.
Por um momento, achei que minhas íris douradas iriam queimar. Minhas pupilas se contraíram, tal qual gatos, quando expostos a grande claridade.
O salão onde entramos era muito iluminado por luzes fluorescentes brancas, dispostas em belíssimos lustres de cristal. A atmosfera era, ao contrário do quarto anterior, branca, todavia, não parecia um necrotério. Tudo era impecável. E absurdamente claro. Móveis, janelas, cortinas e toda a sorte de objetos. Descobri depois que era assim que Vossa Majestade gostava de “ver o mundo”.
No fundo do grande salão havia uma cadeira de madeira branca, entalhada também, no estilo vitoriano. Exceto pelo fato de que ela era tão imensa, que mais me lembrava um trono. Só que estava vazia.
– Vossa Majestade chegará em breve. Sente-se aqui! – pediu Anabelle, indicando-me uma cadeira que ornava com a sala e parecendo ler meus pensamentos acerca de minha talvez decepção por não tê-lo encontrado ali.
Antes de concluir o movimento, as portas se abriram de novo e quem avistei fez meu sangue ferver de ódio.
Giovanna e Letícia.
Aquelas Soturnas malditas! Filhas do demônio em forma de vampiras. Adentraram o recinto com as costumeiras roupas. Letícia com aquele estilo gótico exagerado e Giovanna toda de preto, porém, mais discreta.
Os cabelos louros de Giovanna balançavam levemente a cada passada, conferindo-lhe mais beleza mortal. Letícia, em contrapartida, mantinha aquele olhar psicótico pregado em mim enquanto avançava. Mas, possuía tanta beleza quanto a loura platinada.
– Ora, ora, ora... o que temos aqui? É aquele capachinho de Enri que se alimenta em buracos! – ironizou Giovanna, a voz grave ecoando pelo salão.
– Há há há há, sim, é ele mesmo! Como é o nome dele? Ah, sim, Nickzinho, há há há! – disse Letícia.
A voz dessa última era aguda, irritante e levemente rouca. Possuía movimentos propositadamente teatrais e ensaiados. Uma combinação causticante com aquele estilo medonho.
Anabelle, que tudo observava, continuou impassível em outra cadeira próxima. A postura dela a fazia parecer uma estátua de mármore. O que me despertou certo interesse em sua figura.
– Suponho que veio confessar à Vossa Majestade todos os assassinatos que cometeu bem debaixo do nariz dele. E do nosso também! – acusou Giovanna. – Você é um sanguessuguinha muito do sapeca, Nicholas!
– Com certeza! E também um descuidado! Como pode matar tanto e largar os rastros por aí? – completou Letícia.
– Eu não fiz nada disso. Algum vampiro está matando essas pessoas e não se livra dos cadáveres, mais saibam que não fui eu.
– Além de tudo é um mentiroso descarado. Quem sabe com um pouco de tortura você resolva abrir o bico e nos conte logo como estraçalhou aquelas pobres pessoas! – Giovanna sorria e exibia os caninos afiados.
– Vamos arrancar as presas dele, Giovanna! – exultou Letícia, com a possibilidade de cometer uma carnificina, batendo palmas e dando pulinhos.
As íris das desmortas assumiram uma coloração vermelho-sangue. Os caninos cresceram, tornando-se presas. As unhas aumentaram de tamanho, convertendo-se em garras, tão afiadas quanto vidro. E avançaram.
Como reação, meus músculos ficaram retesados, esperando a investida. Só que ela não aconteceu. No segundo seguinte, Anabelle estava entre eu e as bitchvamps.
– Aconselho as duas a voltarem imediatamente para seus lugares. Vocês sabem muito bem que Vossa Majestade odeia violência dentro de seu palácio.
– E eu aconselho você, Anabelle, a sair da nossa frente, pois esse filhote é de nossa responsabilidade agora, já que Enri sumiu. – rebateu Giovanna. – Vamos acabar com essa palhaçada agora. Se vocês preferem resolver as coisas com diplomacia, problema de vocês. Nós, Soturnas, temos nossa maneira de resolver esse tipo de situação. Possuímos métodos... mais persuasivos.
Aquelas palavras me pegaram desprevenido. E me acertaram em cheio. Como assim Enri havia sumido? Que loucura era aquela? Achei que iria vê-lo em breve.
O clima ficou tenso entre as desmortas. Senti pulsações vibratórias quentes no ar. Anabelle mantinha uma pulsação energética quente, porém, atenta. A das outras duas era extremamente desagradável. Delas, exalava medo, maldade e morte.
– Gostaria que as duas fossem mais prudentes em relação às palavras proferidas. Apesar de serem autoridades de poder e controle, saibam que não permitirei que o sangue dessa criança seja derramado aqui. Ele vai ser interrogado acerca de todos os fatos e depois tomaremos, juntos, nossa decisão. A palavra final é da Majestade. Não me obriguem a ser persuasiva com vocês! – Anabelle mantinha a compostura, mas era possível ver que os olhos dela também ficaram rubros.
– Querida, nós não temos culpa se você é uma galinha morta, um capacho que se esfrega com o Príncipe! Vamos resolver isso do nosso jeito, sim? Agora se me nos der licença... – provocou Letícia, que, traiçoeira como uma serpente, investiu em Anabelle, usando os poderes vampirescos. Rápida como um trovão, tocou na mão de minha anfitriã. E então, sumiram.
Em seguida, Anabelle reapareceu em pleno ar, chocando-se numa parede próxima. Nela, havia um quadro, que se espatifou com o impacto. A desmorta caiu estatelada, como se, em algum momento, fosse de fato, frágil.
Uma risada psicótica ecoou pelo ar, atingindo as extremidades do grande cômodo. Na sequência, Letícia reapareceu, exibindo um orgulho insuportavelmente irritante no sorriso. Tinha de admitir que, apesar de diabólicas, as Soturnas detinham um fascinante dom. Se Anabelle tivesse o mesmo dom que eu, que até então eu não entendia direito, poderia ter evitado o ataque. Mesmo invisíveis, eu podia sentir as vibrações corporais emanadas de Letícia. Isso aconteceu quando elas nos fizeram uma visita no apartamento de Rômulo. Eu só não sabia a origem deles e meu criador não havia tocado no assunto. Neste caso, fui obrigado a ir experimentando sozinho.
– Eu não... podia esperar algo diferente, mas... vocês conseguem jogar mais baixo que os outros desmortos... – murmurou Anabelle, com dificuldade. Ela estava apoiada pelas mãos, de quatro no chão. Algumas gotas de sangue escaparam da boca dela, sinal de que alguns órgãos internos haviam sido comprometidos no impacto.
Giovanna, impiedosa, deslocou-se por trás dela e a segurou pelos cabelos. A anfitriã soltou um grunhido feroz pelo puxão.
– Agora, Anabelle, você vai assistir como se arranca a verdade, como nos tempos antigos. Vou te ajudar a relembrar essa lição, já que você era perita nisso. Letícia, ele é todo seu. – sorriu a morta-viva, sarcástica.
Era visível que a outra vampira obedecia Giovanna em tudo. Giovanna, aproveitando-se disso, usava Letícia para promover suas vontades sangrentas. Até aquele momento, não havia conhecido outras criaturas tão maléficas quanto aquelas duas.
Só que não poderia permitir que elas fizessem aquilo com Anabelle. Um senso de justiça se estabeleceu dentro de mim. Precisava protegê-la, mas não tinha consciência do porquê naquele momento. Era como um laço estreito existindo entre nós, sem motivo aparente.
Letícia veio caminhando em minha direção, confiante em uma vitória eminente. Os olhos vermelhos e insanos faiscavam, tamanha era a vontade de me torturar. No mesmo momento, avancei em direção a ela também. Esperando tomar uma surra daquelas. Provavelmente, ela tinha se alimentado recentemente, porque exalava vigor. Eu, por outro lado, sentia que o sangue de Rômulo estava escasso dentro do meu organismo. Estava faminto e precisava do líquido vermelho. Estaria fraco para enfrentá-la, todavia, usaria minhas últimas forças para derrotá-la.
Letícia, expondo as garras, saltou, para me rasgar com elas. De repente, o ar dentro do ambiente mudou, passando de tenso para acolhedor. Ela interrompeu o movimento, pousando no chão. Os olhos, antes monstruosos, adquiriram calma e brilharam, voltando a ser castanhos. Pareceu até que ela ia chorar. E então, olhou para o lado.
Entendi o motivo e fui emocionalmente derrotado. Essas eram as palavras mais adequadas para descrever o que senti naquele momento. Pois, quando olhei naquela mesma direção, avistei um homem de terno parado na frente de uma porta lateral.
Giovanna também foi derrotada e largou minha anfitriã, ajoelhando-se, em seguida. Anabelle, que no chão estava, lá ficou, também em sinal de reverência.
– Príncipe Dimitri! – gritou Letícia, com a voz mais irritante que o casual.
Estávamos de frente para a Majestade.

Continua...