A
Majestade
 |
| Nicholas, antes de se tornar um Maldito. |
A
cena havia paralisado completamente, parecendo um filme, só que em câmera
lenta. Os espectadores ao redor estacaram, sem conseguir produzir movimento
algum, segurando até mesmo a respiração.
Em
seguida, parecendo sair de um transe, as pessoas viraram as cabeças lentamente,
encarando-me, forçando as vistas para poder ver melhor, já que possuíam a visão
limitada por conta da ausência de luz diurna.
O
cheiro do sangue era muito forte e não consegui voltar ao meu estado normal.
Portanto, encarava os humanos com os olhos sanguíneos, rubros, na forma
vampiresca dos mortos-vivos. Em resposta, houve repulsa por parte deles,
impressionados com o fenômeno presenciado.
Primeiramente
havia medo pairando no ar, mas era medo do desconhecido, do inédito. Só que
depois esse medo deu lugar a outro tipo de temor. As lembranças das notícias
circulando nos canais de comunicação deram vazão ao medo primitivo acerca das
lendas e mitos de entretenimento contidos no universo dos vampiros. Medo de
terem o sangue drenado dos corpos. Medo de serem caçados. Medo de serem mortos,
como gazelas nas savanas. Todos os boatos, de repente, tornaram-se reais e
estavam expostos ali. Havia um monstro sugador de sangue entre eles.
–
Ele... isso... é um vampiro mesmo! – explanou a gorda, com o dedo roliço em
riste.
–
Esse garoto está apenas fantasiado de vampiro. Não vê que fazem isso por causa
dessa onda de boatos que estão passando na televisão? – o velhote de óculos
abria os braços enquanto falava. – Vejam bem, sabemos que os vampiros são
pálidos e possuem a pele gélida, mas ele é tão humano e quente quanto nós e...
– ele tocou meu rosto com a palma da mão direta, retirando-a logo em seguida,
de supetão. – Meu Deus! Está tão gelado quanto um cadáver...
Os
mais próximos de nós arregalaram os olhos, demonstrando total espanto com a
exclamação proferida. Alguns arrepiaram-se dos pés a cabeça.
Foi
possível ouvir o barulho de sirenes. A rua iluminou-se com a luz dos giroflex, banhando-nos de vermelho e
azul, adicionando carga dramática àquela cena. Era possível ouvir coturnos
estalando na calçada, vindo em nossa direção, e até mesmo a estática de um
rádio, revelando que a polícia havia chegado e estava se aproximando de nós, Isso,
com certeza, fruto de alguma denúncia.
–
Então foi essa coisa quem matou esse homem no chão! Cristo, o pescoço dele está
todo mordido, como um animal abatido! Isso não pode ficar impune! – sentenciou
a garota de corte de cabelo moderno.
–
Exatamente, vamos pegá-lo! – concordou a gorda, agarrando firme a bolsa, como
se quisesse usá-la como arma.
Houve
um burburinho de aprovação entre os humanos. Os olhares convergiam ódio. A
energia ali se manifestou em uma só forma, todas direcionadas contra mim.
–
Ele não pode contra todos nós!
–
Essa coisa é um assassino. Vamos matá-lo antes que ele mate mais gente!
–
Demorou!
Então,
do meio da multidão, surgiu um brutamontes munido de um pedaço de pau com uma
ponta afiada. Com um movimento rápido, feito da esquerda para direta em forma
de arco, ele acertou-me em cheio no rosto. O impacto me pegou desprevenido, não
sendo possível absorvê-lo por completo. Portanto, a pancada abriu um corte
profundo em meu rosto, na altura da bochecha esquerda. Um grosso filete de
sangue enegrecido escapou profusamente da ferida. Gritos de êxtase escaparam da
boca da maioria dos presentes, como em um espetáculo de gladiadores romanos.
Fiquei
totalmente incrédulo. Não pela dor física em si, e sim pela audácia daquela
criatura ridícula, achando ser superior somente por ser forte e demonstrar mais
coragem que os outros, comportando-se como uma espécie de macho alfa.
Encarei-o
com uma fúria tão grande que ele, por um momento, perdeu a pose, recompondo-se
em seguida.
–
Atreva-se a fazer isso mais uma vez e arrancarei seu braço num único puxão,
monte de carne. – murmurei com a face crispada, expondo os caninos afiados.
–
Quero ver um franzino como você fazer isso! – ele avançou em novo movimento,
dessa vez no sentido contrário.
Os
humanos haviam fechado um círculo ao nosso redor. Aquilo parecia uma briga de
escola. Mortais que se atrevem a desafiar vampiros quase sempre são
destroçados, mas os casos sempre são abafados. O problema é que nem sempre
domamos nossa natureza assassina e a situação estava indo longe demais.
Estávamos sendo gravados com câmeras de celulares e outros dispositivos
eletrônicos pelas pessoas ao redor.
O
segundo golpe veio, entretanto, fui atencioso dessa vez, não dando chance para
que ele me tocasse novamente. Aparei-o com a mão direita, segurando-o firme
pelo pulso. Empreguei um pouco de força sobrenatural e apertei a munheca do
homem, transformando o rosto dele em uma careta de dor. Usei minha força em sua
totalidade e como quem arranca um graveto de uma planta, arranquei o braço num
solavanco. A clavícula e o osso do ombro produziram um horrendo estalo grave ao
serem partidos. Músculos, tendões e pele foram desfiados, mas resistiram ao
puxão em algumas tiras e ficaram unidos ao tórax. O sangue esguichou do
ferimento, atiçando-me ainda mais. Os urros de dor provocados pela minha
manobra eram música para meus ouvidos. Os espectadores daquele espetáculo
bizarro também soltaram gritos de horror e espanto porque jamais imaginariam
presenciar uma cena daquelas. Ficaram mais embasbacados ainda quando viram, a
olho nu, que o corte no meu rosto estava se fechando, com a carne e a pele
juntando-se pouco a pouco.
Nesse
ínterim, a polícia, que havia chegado, tentava conter o tumulto de pessoas que
se acotovelavam ou corriam em debandada, perturbadas demais com o circo de
horrores ali montado. Depois de algum esforço e algumas pancadas com
cassetetes, conseguiu chegar ao vórtice do espetáculo.
–
Que palhaçada é essa aqui? – questionou o policial, apontando o cassetete para
o chão e segurando a coronha da arma com uma das mãos. Outro homem da lei
surgiu logo atrás, sendo ele maior que o primeiro.
Todos
começaram a falar ao mesmo tempo, transformando a situação em um inferno total.
Ninguém ouvia ou entendia nada. Nitidamente, os policiais começaram a se
irritar.
–
Silêncio! – gritou o policial maior com voz potente de barítono. Os humanos
calaram-se no mesmo instante, impressionados pelo berro. Depois disso, não se
ouviu nem um pio.
–
Você! – apontou para o velho de óculos. – O que está acontecendo aqui?
O
homem aprumou-se todo antes de responder ao guarda.
–
Um homem foi brutalmente assassinado aqui! Foi mordido várias vezes no pescoço
e teve o sangue bebido. O que restou está espalhado pela calçada. – apontou
para o cadáver, que já não era mais a atração principal naquele momento – Veja!
O
guarda olhou por cima do ombro do velhote, demonstrando expressão de desdém.
Aquilo parecia ser muito comum para ele.
–
Por acaso vocês viram ou ouviram dizer quem foi? – indagou o policial,
arqueando a sobrancelha.
–
Bem... – hesitou – Certeza mesmo nós não temos, mas estão dizendo que esse
homem foi morto por um vampiro! – o dedo do velho ficou suspenso na minha
direção – Por aquele jovem. Ele é o tal vampiro que tanto falam na televisão.
Assim
que disse isso, um novo burburinho se formou na multidão. Logo, transformou-se
em algazarra, com todos falando ao mesmo tempo. Outras pessoas também apontaram
os dedos na minha direção. Palavrões e outros impropérios foram proferidos. Ele
tinha razão acerca de alguns fatos, mas não em todo o contexto. O homem que ali
foi encontrado realmente foi sugado por um vampiro, mas não havia sido eu.
–
Mas ele arrancou o braço desse cara apenas com um único puxão! – revelou outra
pessoa próxima de nós – Olhe o senhor mesmo, policial!
Ainda
com expressão de pouco caso, o policial olhou o sujeito grandalhão em meio ao
próprio sangue, estirado no chão. Alguns humanos ali presentes estavam junto
dele e outros, vestidos de branco, que haviam passado por ali naquele momento, prestavam
os primeiros socorros, tentando estancar a hemorragia do ferimento e impedindo
que ela se agravasse. Porém, mesmo com esses cuidados, ele estava mais pálido a
cada minuto.
O
policial virou-se e me encarou de forma patética, como que demonstrando estar
perdido com a situação.
–
O senhor terá que vir conosco! – em seguida, olhou para a multidão – E o resto
de vocês, debandar! O IML vai trazer o carro pra buscar o morto e uma
ambulância foi chamada para levar o homem sem braço ao hospital. Portanto,
sigam suas vidas a partir de agora e nos deixem trabalhar.
Alguns
ameaçaram protestar, porém, foram interrompidos por ele, que levantou a palma
da mão direita em sinal de “basta”.
–
Vamos cuidar desse aqui! – disse, apontando para mim – Venha, rapaz!
Fui
escoltado até a viatura, mas o estranho é que não fui algemado e sim andando ao
lado do guarda, como um amigo.
Adiantando-se,
ele abriu a porta traseira do carro.
–
Entre!
Olhei
de relance para ele antes de entrar e as pupilas dele pareciam ser os de uma
marionete, como que controlado, sem exercer as próprias vontades.
O
outro guarda, até então sem dizer uma palavra, assumiu o volante, enquanto o
que abriu a porta para mim travou-a do lado de fora e se sentou no banco do
passageiro, na frente.
–
Olá, Nicholas.
Tomei
um baita susto quando olhei para a esquerda e vi alguém do meu lado, na
escuridão do carro. As emanações energéticas eram bem conhecidas, mas não pude
deixar de arregalar os olhos.
Era
Enri.
Percebi
uma vibração saindo da mente dele e penetrando diretamente no crânio dos
guardas.
Dirija.
No
mesmo instante, o policial deu partida no veículo, engatou a marcha e saiu em
disparada, acionando o giroflex para
que o trânsito não atrapalhasse o trajeto.
–
Como você pode ver, hipnotizei a mente desses pobres humanos para nos tirarem
daqui, já que, ultimamente, você tem predileção por arranjar encrenca. – Enri
mencionava as palavras com uma pitada de ironia na voz.
–
Como sabia que eu estava aqui, sendo que você deixou o apartamento antes de mim
e Rômulo?
–
Meu caro, eu apenas fui dar uma volta e arejar as ideia quando, de repente,
senti um cheiro muito peculiar: o seu. – Enri me dava tapinhas na coxa para
realçar o clima de ironia no qual queria chegar. – Logo, fui te seguindo.
Quando senti o aroma de sangue no ar, resolvi agir prevendo uma possível
confusão. E estava certo.
–
E Rômulo? – questionei, revelando uma preocupação no tom de voz que não
pretendia.
Revirando
os olhos, o desmorto respondeu:
–
Está em casa, oras. Bebendo uísque. Eu mesmo conferi antes de captar você.
–
Tem certeza de que ele está bem?
–
Sim, tirando aquele drama irritante ... – disse Enri, apoiando o queixo na mão
esquerda.
–
Tenho medo de que ele fique pior, um pouco traumatizado com essas coisas que
estão acontecendo agora, sabe?
Era
um misto de preocupação e carinho dentro de mim. Analisava meus sentimentos e
sabia que nunca havia sentido algo igual por um humano antes. E, se tratando de
características vampirescas, qualquer sentimento enraizado dentro de nós era
amplificado, corroendo-nos além da capacidade humana.
–
Não seja tolo! – os olhos verdes de Enri olhavam diretamente nos meus agora – nossa
relação com Rômulo é puramente interesse. Ele é rico e, além disso, uma fonte
de sangue para nós. Não sinto absolutamente nada por ele!
Baixei
os olhos, querendo que meu criador não me encarasse mais. Ou queria que ele não
lesse o que minhas expressões diziam quando falávamos do humano.
–
E para onde vamos agora?
–
Voltar ao nosso apartamento e fingir que nada disso ocorreu. Já temos problemas
demais para nos preocuparmos. Vamos correr atrás de nossos interesses para
sobrevivermos, está bem, Nicholas?
–
Sim, meu pai! – respondi prontamente.
Decidi
observar a paisagem noturna. Estávamos saindo do centro velho de São Paulo.
Havíamos passado pelo Teatro Municipal, iluminado e com vários humanos na
entrada. Uma peça peculiar estava em cartaz e as filas eram enormes. O tema
era... vampiros. Devido à onda de histeria na internet, esse assunto era moda
em todas as classes sociais. Era uma adaptação do livro Entrevista com o vampiro, de Anne Rice.
Continuei
a olhar pela janela, inspirando fundo, sem a real necessidade disso. Adoraria
saber como Enri se livraria dos problemas que causei e daquelas pessoas que me
gravaram nas câmeras. Aquele material com certeza cairia no Youtube. Porém, de
alguma forma, confiava nas manobras inteligentes dele, como meu criador. E
decidi não abordar aquele assunto no momento.
Tudo
era muito movimentado no centro velho. Vários estabelecimentos abertos e
pessoas transitando. Só era uma pena que, sempre que tentava analisar melhor os
detalhes, uma Blazer preta e de vidros escuros não saía da frente do nosso
carro.
O
retrovisor refletia um carro igual. À nossa frente havia outro. Na lateral
esquerda, mais outro. Estávamos no meio de quatro carros iguais.
–
Estamos cercados! – Enri indagou.
De
repente, os quatro possantes emparelharam com o carro de polícia. O impacto do
metal se chocando fez tudo balançar. Mesmo assim, os guardas continuavam
dirigindo a toda velocidade, do jeito que podiam em plena Avenida São João.
Corra!
Enri
havia usado seu poder mental novamente sobre o motorista, obrigando-o a forçar
o corpo contra sua vontade mais uma vez. Os carros estavam em alta velocidade
agora, cantando a borracha dos pneus no asfalto. Os motoristas da frente,
percebendo a algazarra, desviavam os veículos, interpretando aquilo como uma
perseguição policial, só que ao contrário, já que Blazers iam ao encalço de uma
viatura.
Use a arma. Atire nos pneus!
O
policial que estava no banco de passageiro, dominado pela hipnose vampiresca,
desceu o vidro da janela e começou a atirar. Pessoas ouviram os disparos e gritaram,
correndo ou se jogando no chão. Um novo pânico se instaurou nas ruas do centro.
Então, uma das balas perfurou um pneu dianteiro. A roda, agora nua, entrou em
atrito com o asfalto, produzindo uma chuva de faíscas. O ruído foi alto e
irritante. A velocidade era tão alta! O dano fez a roda se soltar do eixo e o
carro não resistiu. A lataria alcançou o chão e a Blazer capotou no meio da
avenida, rodopiando diversas vezes até se estabilizar, caída de lado.
–
Quem está atrás de nós, Enri?
–
Os Patrulheiros! – gritou ele, naturalmente irritado pelo estresse.
–
Quem?
–
Os Patrulheiros! São elas, as Soturnas! São elas que formam os Patrulheiros.
–
Mas de que diabos você está falando? Nunca ouvi falar disso! Você nunca me
disse nada...
–
CHEGA! Preciso pensar! Cale a sua boca de uma vez por todas! – os olhos de Enri
estavam preenchidos de vermelho-sangue.
Por
conta da discussão, o controle mental havia afrouxado. Os policiais dominados,
por sua vez, estavam recobrando a consciência.
–
Mas que diabos...
–
Onde estou...
A
Blazer localizada à esquerda do motorista veio com tudo e deu um encontrão na
viatura. Foi tão forte, que o corpo do policial motorista foi esmigalhado. Sangue
voou para todo lado. Os vidros se espatifaram em uma chuva de pontinhos
brilhantes.
O
mundo virou de ponta cabeça e voltou, repetindo esse ciclo infinitas vezes. A
viatura estava capotando também. O policial armado voou para fora do veículo
com o impacto, sendo arremessado por metros. A arma dele, porém, havia ficado
no banco e com o chacoalhar insistente e rodopiante, disparou. Quando a bala
acertou em cheio meu crânio, tudo ficou negro.
***
As
pálpebras pesavam. Era difícil abrí-las, mas, com esforço, consegui. A visão
estava embaçada, como quando se acorda de um sono profundo. Esfreguei os olhos
e demorei até identificar a cor do teto, que era roxa. Analisei-a por um
momento. Não era do tipo que se via sempre em catálogos de cores de tinta,
entretanto, era muito bonita, denotando bom gosto.
Percebi,
depois, que estava deitado em uma cama. Os lençóis eram macios. De cetim negro.
Mais um vislumbre de requinte. O colchão, suave. Até imaginei que estivesse
deitado sobre uma imensa nuvem negra, prestes a desabar em tempestade.
Vagarosamente,
sentei, apreciando o restante do ambiente. Todos os móveis daquele local eram
escuros, feitos em tabaco. O guarda-roupa, a cômoda, a cama, o abajur que
iluminava as formas com uma luz levemente alaranjada, tudo. Além disso, eram
bem modernos. Pareciam ter sido desenhados por designers conceituados. No canto direito, também, havia uma
poltrona aparentemente confortável e, sentada nela, uma mulher.
Desloquei-me,
agilmente, ao outro canto do cômodo, assustado.
–
Você demorou a despertar. – disse ela, com uma voz grave. Os olhos azuis e
gélidos não desgrudavam de mim.
Tinha
de admitir: ela era linda. E, claro, uma noturna. A pele pálida, característica
dos mortos-vivos, contrastava infinitamente com os cabelos, escuros como a
noite. Era tão comprido, que estava amarrado em torno de si mesmo e caía pelo
ombro direito, num rabo de cavalo que beirava a cintura. Veias negro-esverdeadas
rodeavam o rosto perfeito da criatura. Desciam levemente pelo pescoço, que
estava coberto por uma gargantilha preta com pedrinhas. O corpo, também divino,
era emoldurado por um justo – porém discreto – vestido carmim. A maquiagem era
simples e impactante, ao mesmo tempo. Apenas rímel nos olhos, destacando-os
ainda mais e batom, no mesmo tom das roupas. Por fim, scarpans negros lhe compunham a postura ereta.
Pela
reação do susto, meus olhos estavam vermelhos.
–
Quem é você? – questionei.
–
Meu nome é Anabelle. Fique tranquilo, Nicholas. Não vou lhe fazer mal.
–
Como você sabe meu nome? – espantei-me, erguendo uma sobrancelha.
Em
nenhum momento a vampira desviou os olhos dos meus.
–
Nós sabemos de tudo, criança. – respondeu Anabelle, de forma enigmática.
Achei
a resposta estranha demais. E a forma como ela a mencionou me arrepiou dos pés
a cabeça. Não saberia dizer ao certo o porquê, mas acredito que era por sua
forma profunda e completamente inumana de se expressar. A voz da desmorta era
grave, dona de conhecimentos oriundos e inimagináveis.
–
Vista-se. Em breve você será apresentado. – informou a noturna, dessa vez,
descendo os olhos, como se estivesse me escaneando. Somente naquele momento
percebi que estava sem roupas. O corpo delgado estava à mostra e a morta-viva o
estava analisando.
–
O que vou vestir? – questionei, sem jeito.
–
No guarda-roupa encontrará trajes adequados. Não demore. – Anabelle levantou da
poltrona ao terminar a frase. Ela parecia flutuar ao invés de andar, tamanha
postura e destreza que emanavam dela. Colocou a mão de unhas bem feitas e
pintadas num tom de café na maçaneta ornamentada. – Alguma dúvida?
–
Sim... a quem serei apresentado?
–
À Vossa Majestade. – disse, Anabelle, saindo e fechando a porta sem mais nada
dizer.
Fiquei
parado olhando para a porta por um tempo, digerindo aquela informação.
Majestade?
Quem seria? E o que queria de mim? E Enri, onde estaria? Talvez em quarto
vizinho ou em outro cômodo?
Bom...
pelo lugar esplendoroso, deveria se alguém importante.
Ao
abrir o guarda-roupa, me deparei com várias opções de vestuário, do moderno ao
casual. Resolvi colocar uma camiseta gola V preta, tênis pretos de cano longo e
um jeans lavado.
Pelo
tom de voz da vampira, precisava me apressar. Senti que o tempo estava urgindo.
***
Anabelle
estava esperando do lado de fora do recinto quando saí. A postura continuava
intacta e parecia mais uma estátua, de tão imóvel que estava ao me aguardar. Os
olhos de gelo estavam fixos, admirando uma arandela em formato de dragão.
–
Linda, não? – objetou.
E
realmente era. Ricamente detalhada, sendo fiel até mesmo nos detalhes das
escamas. Era construída em bronze. A lâmpada emitia uma luz amarelada.
Não
havia só aquela. O longo corredor no qual nos encontrávamos estava repleto delas,
conferindo luminosidade branda ao ambiente.
–
Um mero capricho de Vossa Majestade, deveras. Afinal, seres como nós podem
enxergar no escuro perfeitamente. – completou a vampira, ironicamente.
–
Onde estamos? – questionei, demonstrando total curiosidade e aproveitando para
ignorar o comentário feito.
–
Estamos no que chamamos, entre nós, de Palácio, mas, em suma, é a residência da
Majestade.
Interessante...
ela não dizia o nome da entidade por trás do título de Majestade. A minha
curiosidade estava aumentando cada vez mais para conhece-la. Quem seria?
Decidi
arriscar:
–
Afinal, qual o nome da Majestade?
–
Tudo no seu tempo, criança. – respondeu a vampira apenas, sem parar de andar e
nem me olhar nos olhos.
Mudei
de tática:
–
E em qual lugar de São Paulo estamos exatamente?
Anabelle
parou de repente e me encarou profundamente nos olhos. Senti as emanações
vibratórias dela e constatei que ela não era sempre do tipo comedida. Parecia
que perdia a paciência rapidamente. E não é aconselhável estar perto de um
vampiro impaciente.
–
Tudo... no... seu... tempo! Agora... continuemos, sim?
Do
mesmo modo que perdeu a compostura, a desmorta a recuperou rapidamente, como se
aquele pequeno momento tenso não tivesse de fato ocorrido.
No
final do corredor, passamos por uma porta dupla de madeira maciça e entalhada
com formas geométricas. A maçaneta era idêntica à do quarto em que estava. E
isso se aplicava a todos os portais ali existentes.
Em
seguida, subimos uma escadaria de concreto aparente, dividida em dois lances.
As paredes ao redor também eram revestidas do mesmo material. As arandelas de
dragão continuavam aparecendo, porém, com intensidade reduzida. Entre os lances
da escada, na divisão do corrimão, existia a escultura de uma gárgula. A face
estava crispada e tinha dentes protuberantes. Como o dos vampiros. O olhar,
sinistro e sem pupilas, parecia que me focalizava e virava a cabeça a cada
passo escada acima. Porém, era apenas impressão... ou não...
Por
fim, nos deparamos com outra porta dupla, também entalhada, gigantesca.
–
Agora, criança, você conhecerá Vossa Majestade. Este é o grande salão.
Um
frio me percorreu a espinha, de baixo para cima, entretanto, não manifestei
reação alguma.
Anabelle
forçou a maçaneta e abriu as portas.
Por
um momento, achei que minhas íris douradas iriam queimar. Minhas pupilas se
contraíram, tal qual gatos, quando expostos a grande claridade.
O
salão onde entramos era muito iluminado por luzes fluorescentes brancas,
dispostas em belíssimos lustres de cristal. A atmosfera era, ao contrário do
quarto anterior, branca, todavia, não parecia um necrotério. Tudo era
impecável. E absurdamente claro. Móveis, janelas, cortinas e toda a sorte de
objetos. Descobri depois que era assim que Vossa Majestade gostava de “ver o
mundo”.
No
fundo do grande salão havia uma cadeira de madeira branca, entalhada também, no
estilo vitoriano. Exceto pelo fato de que ela era tão imensa, que mais me
lembrava um trono. Só que estava vazia.
–
Vossa Majestade chegará em breve. Sente-se aqui! – pediu Anabelle, indicando-me
uma cadeira que ornava com a sala e parecendo ler meus pensamentos acerca de
minha talvez decepção por não tê-lo encontrado ali.
Antes
de concluir o movimento, as portas se abriram de novo e quem avistei fez meu
sangue ferver de ódio.
Giovanna
e Letícia.
Aquelas
Soturnas malditas! Filhas do demônio em forma de vampiras. Adentraram o recinto
com as costumeiras roupas. Letícia com aquele estilo gótico exagerado e
Giovanna toda de preto, porém, mais discreta.
Os
cabelos louros de Giovanna balançavam levemente a cada passada, conferindo-lhe
mais beleza mortal. Letícia, em contrapartida, mantinha aquele olhar psicótico pregado
em mim enquanto avançava. Mas, possuía tanta beleza quanto a loura platinada.
–
Ora, ora, ora... o que temos aqui? É aquele capachinho de Enri que se alimenta
em buracos! – ironizou Giovanna, a voz grave ecoando pelo salão.
–
Há há há há, sim, é ele mesmo! Como é o nome dele? Ah, sim, Nickzinho, há há há!
– disse Letícia.
A
voz dessa última era aguda, irritante e levemente rouca. Possuía movimentos
propositadamente teatrais e ensaiados. Uma combinação causticante com aquele
estilo medonho.
Anabelle,
que tudo observava, continuou impassível em outra cadeira próxima. A postura
dela a fazia parecer uma estátua de mármore. O que me despertou certo interesse
em sua figura.
–
Suponho que veio confessar à Vossa Majestade todos os assassinatos que cometeu bem
debaixo do nariz dele. E do nosso também! – acusou Giovanna. – Você é um
sanguessuguinha muito do sapeca, Nicholas!
–
Com certeza! E também um descuidado! Como pode matar tanto e largar os rastros
por aí? – completou Letícia.
–
Eu não fiz nada disso. Algum vampiro está matando essas pessoas e não se livra
dos cadáveres, mais saibam que não fui eu.
–
Além de tudo é um mentiroso descarado. Quem sabe com um pouco de tortura você
resolva abrir o bico e nos conte logo como estraçalhou aquelas pobres pessoas! –
Giovanna sorria e exibia os caninos afiados.
–
Vamos arrancar as presas dele, Giovanna! – exultou Letícia, com a possibilidade
de cometer uma carnificina, batendo palmas e dando pulinhos.
As
íris das desmortas assumiram uma coloração vermelho-sangue. Os caninos
cresceram, tornando-se presas. As unhas aumentaram de tamanho, convertendo-se em
garras, tão afiadas quanto vidro. E avançaram.
Como
reação, meus músculos ficaram retesados, esperando a investida. Só que ela não
aconteceu. No segundo seguinte, Anabelle estava entre eu e as bitchvamps.
–
Aconselho as duas a voltarem imediatamente para seus lugares. Vocês sabem muito
bem que Vossa Majestade odeia violência dentro de seu palácio.
–
E eu aconselho você, Anabelle, a sair da nossa frente, pois esse filhote é de
nossa responsabilidade agora, já que Enri sumiu. – rebateu Giovanna. – Vamos
acabar com essa palhaçada agora. Se vocês preferem resolver as coisas com
diplomacia, problema de vocês. Nós, Soturnas, temos nossa maneira de resolver
esse tipo de situação. Possuímos métodos... mais persuasivos.
Aquelas
palavras me pegaram desprevenido. E me acertaram em cheio. Como assim Enri
havia sumido? Que loucura era aquela? Achei que iria vê-lo em breve.
O
clima ficou tenso entre as desmortas. Senti pulsações vibratórias quentes no
ar. Anabelle mantinha uma pulsação energética quente, porém, atenta. A das
outras duas era extremamente desagradável. Delas, exalava medo, maldade e morte.
–
Gostaria que as duas fossem mais prudentes em relação às palavras proferidas.
Apesar de serem autoridades de poder e controle, saibam que não permitirei que
o sangue dessa criança seja derramado aqui. Ele vai ser interrogado acerca de
todos os fatos e depois tomaremos, juntos, nossa decisão. A palavra final é da
Majestade. Não me obriguem a ser persuasiva com vocês! – Anabelle mantinha a
compostura, mas era possível ver que os olhos dela também ficaram rubros.
–
Querida, nós não temos culpa se você é uma galinha morta, um capacho que se
esfrega com o Príncipe! Vamos resolver isso do nosso jeito, sim? Agora se me nos
der licença... – provocou Letícia, que, traiçoeira como uma serpente, investiu
em Anabelle, usando os poderes vampirescos. Rápida como um trovão, tocou na mão
de minha anfitriã. E então, sumiram.
Em
seguida, Anabelle reapareceu em pleno ar, chocando-se numa parede próxima.
Nela, havia um quadro, que se espatifou com o impacto. A desmorta caiu
estatelada, como se, em algum momento, fosse de fato, frágil.
Uma
risada psicótica ecoou pelo ar, atingindo as extremidades do grande cômodo. Na
sequência, Letícia reapareceu, exibindo um orgulho insuportavelmente irritante
no sorriso. Tinha de admitir que, apesar de diabólicas, as Soturnas detinham um
fascinante dom. Se Anabelle tivesse o mesmo dom que eu, que até então eu não
entendia direito, poderia ter evitado o ataque. Mesmo invisíveis, eu podia
sentir as vibrações corporais emanadas de Letícia. Isso aconteceu quando elas
nos fizeram uma visita no apartamento de Rômulo. Eu só não sabia a origem deles
e meu criador não havia tocado no assunto. Neste caso, fui obrigado a ir
experimentando sozinho.
–
Eu não... podia esperar algo diferente, mas... vocês conseguem jogar mais baixo
que os outros desmortos... – murmurou Anabelle, com dificuldade. Ela estava
apoiada pelas mãos, de quatro no chão. Algumas gotas de sangue escaparam da
boca dela, sinal de que alguns órgãos internos haviam sido comprometidos no
impacto.
Giovanna,
impiedosa, deslocou-se por trás dela e a segurou pelos cabelos. A anfitriã soltou
um grunhido feroz pelo puxão.
–
Agora, Anabelle, você vai assistir como se arranca a verdade, como nos tempos
antigos. Vou te ajudar a relembrar essa lição, já que você era perita nisso.
Letícia, ele é todo seu. – sorriu a morta-viva, sarcástica.
Era
visível que a outra vampira obedecia Giovanna em tudo. Giovanna,
aproveitando-se disso, usava Letícia para promover suas vontades sangrentas.
Até aquele momento, não havia conhecido outras criaturas tão maléficas quanto
aquelas duas.
Só
que não poderia permitir que elas fizessem aquilo com Anabelle. Um senso de
justiça se estabeleceu dentro de mim. Precisava protegê-la, mas não tinha consciência
do porquê naquele momento. Era como um laço estreito existindo entre nós, sem
motivo aparente.
Letícia
veio caminhando em minha direção, confiante em uma vitória eminente. Os olhos
vermelhos e insanos faiscavam, tamanha era a vontade de me torturar. No mesmo momento,
avancei em direção a ela também. Esperando tomar uma surra daquelas.
Provavelmente, ela tinha se alimentado recentemente, porque exalava vigor. Eu,
por outro lado, sentia que o sangue de Rômulo estava escasso dentro do meu
organismo. Estava faminto e precisava do líquido vermelho. Estaria fraco para enfrentá-la,
todavia, usaria minhas últimas forças para derrotá-la.
Letícia,
expondo as garras, saltou, para me rasgar com elas. De repente, o ar dentro do
ambiente mudou, passando de tenso para acolhedor. Ela interrompeu o movimento,
pousando no chão. Os olhos, antes monstruosos, adquiriram calma e brilharam,
voltando a ser castanhos. Pareceu até que ela ia chorar. E então, olhou para o
lado.
Entendi
o motivo e fui emocionalmente derrotado. Essas eram as palavras mais adequadas
para descrever o que senti naquele momento. Pois, quando olhei naquela mesma
direção, avistei um homem de terno parado na frente de uma porta lateral.
Giovanna
também foi derrotada e largou minha anfitriã, ajoelhando-se, em seguida. Anabelle,
que no chão estava, lá ficou, também em sinal de reverência.
–
Príncipe Dimitri! – gritou Letícia, com a voz mais irritante que o casual.
Estávamos
de frente para a Majestade.
Continua...