BELOS E MALDITOS - Capítulo 3



O Descuido


Eu caminhava a passos rápidos por um corredor escuro e repleto de brumas. Sentia que naquele lugar havia seres a me observar, mas não conseguia enxerga-los com meus sentidos aguçados. A névoa era muito densa e eu, dentro daquilo, avançava com os braços estendidos.
            Lá, as emoções daqueles que estavam ali eram intensas, chicoteando-me brutalmente, numa clara mostra de ódio. Porém, nesse ínterim, eu senti outra força, branda e cálida, como uma tarde de outono, outrora vivida.
            Aquela emoção captada me dizia para seguir em frente, porém, sempre me alertando a ter cautela.
            Tudo era uma mentira!
            Tudo não passava de mentira!
            Você descobrirá que tudo é mentira!
            E assim eu acordava quase todas as noites depois de nossa última visita a Rômulo, como que saindo de um pesadelo.
            Apesar de sentir isso em meus sonhos, as coisas transcorriam na mais pura calma. Algum tempo depois que conheci Rômulo, brincávamos frequentemente, ele, Enri e eu. As “doações” não tinham local definido para acontecer. Podia ser em nosso apartamento ou no dele, isso não importava. Todavia, quase sempre o deixávamos à beira da morte quando lhe drenávamos o sangue quente.
            Parecia que Enri não se importava em deixar o garoto naquele estado. Com o tempo, eu, por outro lado, comecei a adquirir um sentimento de carinho por ele e depois, passei a não concordar com a forma como meu criador o tratava. Entretanto, omiti minha opinião a respeito disso.
            Divagava nesses pensamentos na sala de estar de nosso apartamento, quando Enri sentou ao meu lado. Em seguida, pegou o controle remoto e o acionou, ligando a TV, que transmitia naquele momento um telejornal.
            E foi aí que voltei a realidade e prestei atenção na notícia daquele momento.
            “Na tarde de hoje o Instituto Médico Legal divulgou o laudo da causa da morte do estudante de moda Douglas Pereira, morto na noite de sábado em uma casa noturna, na região da Avenida Paulista, centro de São Paulo. Os legistas afirmaram que encontraram perfurações no pescoço do garoto”.
            Enri me olhou de esguelha, enquanto o take mudou para a imagem de um membro da equipe legista.
            “As perfurações causadas no pescoço da vítima não foram feitas por objetos perfurantes ou algo do gênero, mas sim por uma arcada dentária. Contudo, essa arcada possui dentes caninos maiores que os convencionais, extremamente pontiagudos.”
            Sem me olhar, Enri mudou o canal pelo controle remoto, indo parar em um noticiário onde a opinião do âncora se fazia presente e que as pessoas adoram por ser bem sensacionalista.. Acima do peso, ele estava de pé dentro de uma roupa social e gesticulava, bradando coisas e com o rosto vermelho, demonstrando indignação e andando pelo estúdio simples. O mesmo vídeo exibido no outro telejornal estava congelado no monitor atrás do âncora.
            “Brasil, isso é muito estranho! Como pode alguém ser morto a dentadas no pescoço? E o que o médico legista disse? Que os caninos eram pontudos! Isso é desculpa que se dê a uma família que perdeu um ente querido de forma violenta em São Paulo? Daqui a pouco eles vão falar que existem vampiros entre nós!”
            Agilmente, Enri se levantou do sofá e foi para a sacada, como se quisesse tomar um ar fresco. Eu sabia que ele queria evitar uma discussão entre nós, devido ao teor e gravidade do assunto, mas mesmo assim, fui atrás dele.
            - Eu não estou afim de conversar agora! – disparou Enri, cruzando os braços contra o peito.
            - Mas eu quero lhe falar uma coisa. Pelo jeito que o âncora daquele último jornal falou, tenho certeza de que a atenção das pessoas será desviada dessa história mais cedo do que imaginamos.
            - Pode até ser, Nick, mas mesmo assim teremos que ficar de olhos bem abertos, porque, mais cedo ou mais tarde, os outros descobrirão quem fez isso e as Soturnas virão atrás de nós.
            - É disso que tenho medo, Enri. É que...
            - Por favor, Nicholas. Não quero falar sobre isso agora. Preciso pensar um pouco. Dê-me licença, por favor! – vociferou Enri.
            Apesar de ter ficado um tanto chateado com a interrupção dele, eu o entendi. Eu, sem querer, o coloquei também em uma situação delicada. Agora, o IML havia divulgado a causa da morte de Douglas e incontestavelmente, as pessoas mais fanáticas estavam certas. Ele havia sido morto por um vampiro. Talvez as pessoas nem ligassem para isso e as Soturnas, com o tempo, se esquecessem completamente.
            A campainha do interfone soou e em um segundo, Enri, estava com ele na orelha, pois atravessou a sacada e a sala com a velocidade vampírica.
            - Pois não? ... Sim, pode manda-lo subir.
            Apesar da distância entre Enri e eu, captei a voz do porteiro anunciando a presença de Rômulo, porém, quando ele entrou, achei aquilo estranho, pois senti uma onde de emoção diferente partindo dele.
            - Enri! Nicholas! Vocês viram a televisão?
            Enri e eu respondemos que sim somente com um aceno de cabeça.
            - Vocês não estão preocupados? –indagou Rômulo.
            - Preocupados? Por quê? – rebateu Enri com a costumeira frieza. – Daqui a pouco esses mortais estúpidos esquecem essa baboseira, como sempre fazem nesse país.
            Apesar da maneira como falava com Rômulo, ele mentiu. Preocupação emanava dele.
            Rômulo estava apreensivo demais. Eu também conseguia sentir. Então, entrei na conversa:
            - O que foi, Rômulo? Tem alguma coisa a mais que quer nos dizer?
            - Tem sim. Eu concordo com o que Enri disse. Entretanto, imprimi uns arquivos para que vocês não tenham o trabalho de fuçar na internet. Vejam! – relatou o moreno, mostrando-nos um pequeno chumaço de folhas sulfite com notícias de internet e mais algumas informações coletadas em redes sociais.
            O que tinha ali não era nada bom.
            Tanto nos sites de notícias quanto no de redes sociais, havia postagens e mais postagens acerca do incidente na casa noturna. Mas o pior é que os internautas estavam comentando sobre a possibilidade de coexistirem com vampiros. Alguns, logicamente, criticavam a ideia. Em compensação, outros criam declaradamente nisso e até postavam artigos curiosos para reforçar seus argumentos. No Twitter então, não se falava outra coisa a não ser da existência de vampiros, demônios e outras criaturas sobrenaturais.
            - E agora, Enri? O que vamos fazer? – questionei.
            - Não vamos fazer nada, oras. Ficaremos exatamente como estamos. É como eu te disse: uma hora as pessoas vão esquecer! Isso que o Rômulo nos trouxe é pura onda de internet, que mais cedo ou mais tarde será substituída por outra.
            - Calma, gente. Calma! Eu estou aqui, do lado de vocês. E farei o que estiver ao meu alcance para, aos poucos, acabar com essa onda de histeria. – disse Rômulo, com seus olhos grandes e castanhos brilhando. E voltando-se a mim, completou – Estarei do lado de vocês para o que der e vier.
            Em seguida, ele estendeu os braços largos, oferecendo um abraço. E eu o correspondi.
            Emitindo um rosnado baixo, Enri se esgueirou às sombras da sacada e por lá ficou, olhando o horizonte, imóvel como estátua.
            O silêncio caiu sobre nós, sendo apenas interrompido por uma goteira irritante vazando da torneira da pia da cozinha.
            Desvencilhei-me dos braços de Rômulo.
            - Não ligue, Rômulo. Ele está assim por conta dos últimos acontecimentos. Quando tocamos nesse assunto, ele se irrita mesmo.
            - Tudo bem. Eu estou acostumado com o temperamento dele, afinal, nos conhecemos a certo tempo, lembra? – abrindo aquele sorriso perfeito.
            Por um breve momento, ficamos nos encarando.
            - Tanto os seus olhos quanto os de Enri são sinistros, mas mesmo sentindo arrepios, não consigo parar de olhá-los.
            Em resposta, dei apenas um meio sorriso. Captei as emoções dele, mas ele não queria “doar”. Ele estava desejando outra coisa. E eu sabia que era um pedido.
            - Eu quero ser um de vocês.
            No segundo seguinte, rápido como um trovão, Enri havia se deslocado da sacada para o living com sua velocidade anormal, apontando o dedo para o rosto de Rômulo.
            - Já disse que isso não vai acontecer! Eu não vou transformar você!
            - Hey, Enri! Que modos são esses com Rômulo?
            - Vê se não enche você também! E não coloque caramiolas na cabeça dele! Não podemos simplesmente transformar todas as pessoas que vemos pelo caminho!
            Mal Enri disse isso, Rômulo já estava de cabeça baixa, olhos transbordando em lágrimas, prestes a desabar.
            - E sabe o que mais? Fiquem aí. Vou dar uma volta... e não me siga, Nicholas! – sentenciou Enri, sumindo, em dois saltos, janela abaixo.
            Tomei Rômulo em meus braços como se fosse um filho ou simplesmente um boneco.
            - Sinto muito, Rômulo. Não se preocupe. Ele ficou muito nervoso com essa história, mas pode deixar. No momento certo, eu mesmo transformo você!
            Rômulo demonstrou alegria com os olhos. E passando o polegar por sua sobrancelha, completei:
            - Eu prometo!
            Depois de mais um abraço, Rômulo resolveu que ia para casa. Desci com ele até o hall e, olhando-o nos olhos, reforcei:
            - Eu prometo!
            - Cuide-se, Nick. E se precisar, não hesite em me ligar. Talvez eu seja útil em algo para vocês – murmurou Rômulo, beijando-me no rosto e me abraçando mais uma vez.
            - Não se preocupe com isso, bonitão. Um dia você será, só que ainda não se ligou.
            Rômulo deu mais um sorriso maroto e foi embora, dobrando a esquina. Nesse momento, o perdi de vista.
            A noite estava agradável, então, ao invés de voltar ao apartamento, resolvi dar uma volta e apreciar o movimento na Avenida Paulista. Viver com outro vampiro ao lado nem sempre é bom. De vez em quando, é necessário estar entre os humanos e sentir o calor irradiado e o bombear de corações limitados de tempo, pertencente aos vivos. Apreciar as feições de pessoas intelectuais e fúteis que circulam por lá, onde o estilo e a maneira de se vestir é sempre uma marca urbana registrada.
            Divagando nessas circunstâncias, tomei rumo ao centro velho da cidade, através da Rua Augusta. Passei por mais uma multidão de pessoas, sempre com alguma bebida na mão e um sorriso escancarado no rosto, como se estivessem incutidas em um rodopio de demência.
            Transeuntes de todos os tipos me encaravam com um misto de medo e admiração, até mesmo os mais machões presentes nos grupos. Divertia-me com a situação e retribuía cada olhar com um leve aceno de cabeça.
            Foi então, no cruzamento da Av. São Luiz com a Xavier de Toledo, que tudo mudou de figura. Exatamente quando um cheiro extremamente familiar e inebriante me invadiu as narinas. Segui o rastro dele e andando um pouco mais, estava no Largo da Memória, ao lado da Estação Anhangabaú do metrô. Ali, havia uma concentração de pessoas em crescente burburinho. Delas, vinha a energia do medo e da indignação.
            Perto o suficiente de ver o que estava acontecendo, aquele aroma atiçou-me deliciosamente as entranhas. E a fonte dele era um homem, jogado ao chão, com uma baita mordida no pescoço, banhado em sangue e sem vida.
            - Meu Deus do céu, o que é isso? – indignou-se uma mulher próxima, que possuía um rosto bonito emoldurado por um moderno corte Chanel.
            - Parece aquele caso do menino que foi morto por mordidas! – observou uma gorda com cara de quem tinha enfrentado um difícil dia de trabalho na empresa – Espero que isso não seja coisa de um serial killer!
            - Era só o que faltava nessa droga de cidade! – objetou um senhor com óculos de aros e olhar inteligente.
            De repente, um terrível grito fez todos arrepiarem-se dos pés a cabeça. Só quando olhei na direção de onde ele veio entendi meu erro. Uma das espectadoras do horrendo show apontava para mim completamente transtornada, fazendo uma terrível careta de horror. Da boca dela saía uma palavra balbuciada que os humanos ao redor não conseguiam ouvir. Todavia, eu sim.
Em seguida, entendi como ela percebeu o que dizia. Ao sentir o aroma do sangue, minha anatomia me denunciou: meus olhos, antes amendoados, estavam rubros, como se fossem extensões daquele líquido no chão. Os caninos estavam extremamente prolongados, como dois finos punhais, condizendo com a descrição do médico legista na TV.
“Contudo, essa arcada possui dentes caninos maiores que os convencionais, extremamente pontiagudos.”
Quando finalmente a multidão seguiu o dedo da jovem e a viram apontando diretamente a mim, ela conseguiu pronunciar o que dizia em alto e bom tom:
- VAMPIRO!
A partir dali, o centro da cidade se transformou em um verdadeiro caos.


Continua...

Nenhum comentário:

Postar um comentário