O Descuido
Eu caminhava a passos
rápidos por um corredor escuro e repleto de brumas. Sentia que naquele lugar
havia seres a me observar, mas não conseguia enxerga-los com meus sentidos
aguçados. A névoa era muito densa e eu, dentro daquilo, avançava com os braços
estendidos.
Lá,
as emoções daqueles que estavam ali eram intensas, chicoteando-me brutalmente,
numa clara mostra de ódio. Porém, nesse ínterim, eu senti outra força, branda e
cálida, como uma tarde de outono, outrora vivida.
Aquela
emoção captada me dizia para seguir em frente, porém, sempre me alertando a ter
cautela.
Tudo
era uma mentira!
Tudo
não passava de mentira!
Você
descobrirá que tudo é mentira!
E
assim eu acordava quase todas as noites depois de nossa última visita a Rômulo,
como que saindo de um pesadelo.
Apesar
de sentir isso em meus sonhos, as coisas transcorriam na mais pura calma. Algum
tempo depois que conheci Rômulo, brincávamos frequentemente, ele, Enri e eu. As
“doações” não tinham local definido para acontecer. Podia ser em nosso
apartamento ou no dele, isso não importava. Todavia, quase sempre o deixávamos
à beira da morte quando lhe drenávamos o sangue quente.
Parecia
que Enri não se importava em deixar o garoto naquele estado. Com o tempo, eu,
por outro lado, comecei a adquirir um sentimento de carinho por ele e depois,
passei a não concordar com a forma como meu criador o tratava. Entretanto,
omiti minha opinião a respeito disso.
Divagava
nesses pensamentos na sala de estar de nosso apartamento, quando Enri sentou ao
meu lado. Em seguida, pegou o controle remoto e o acionou, ligando a TV, que
transmitia naquele momento um telejornal.
E
foi aí que voltei a realidade e prestei atenção na notícia daquele momento.
“Na tarde de hoje o Instituto Médico Legal
divulgou o laudo da causa da morte do estudante de moda Douglas Pereira, morto
na noite de sábado em uma casa noturna, na região da Avenida Paulista, centro
de São Paulo. Os legistas afirmaram que encontraram perfurações no pescoço do
garoto”.
Enri
me olhou de esguelha, enquanto o take
mudou para a imagem de um membro da equipe legista.
“As perfurações causadas no pescoço da
vítima não foram feitas por objetos perfurantes ou algo do gênero, mas sim por
uma arcada dentária. Contudo, essa arcada possui dentes caninos maiores que os
convencionais, extremamente pontiagudos.”
Sem
me olhar, Enri mudou o canal pelo controle remoto, indo parar em um noticiário
onde a opinião do âncora se fazia presente e que as pessoas adoram por ser bem
sensacionalista.. Acima do peso, ele estava de pé dentro de uma roupa social e
gesticulava, bradando coisas e com o rosto vermelho, demonstrando indignação e
andando pelo estúdio simples. O mesmo vídeo exibido no outro telejornal estava
congelado no monitor atrás do âncora.
“Brasil, isso é muito estranho! Como pode
alguém ser morto a dentadas no pescoço? E o que o médico legista disse? Que os
caninos eram pontudos! Isso é desculpa que se dê a uma família que perdeu um
ente querido de forma violenta em São Paulo? Daqui a pouco eles vão falar que
existem vampiros entre nós!”
Agilmente,
Enri se levantou do sofá e foi para a sacada, como se quisesse tomar um ar
fresco. Eu sabia que ele queria evitar uma discussão entre nós, devido ao teor
e gravidade do assunto, mas mesmo assim, fui atrás dele.
-
Eu não estou afim de conversar agora! – disparou Enri, cruzando os braços
contra o peito.
-
Mas eu quero lhe falar uma coisa. Pelo jeito que o âncora daquele último jornal
falou, tenho certeza de que a atenção das pessoas será desviada dessa história
mais cedo do que imaginamos.
-
Pode até ser, Nick, mas mesmo assim teremos que ficar de olhos bem abertos,
porque, mais cedo ou mais tarde, os outros descobrirão quem fez isso e as
Soturnas virão atrás de nós.
- É
disso que tenho medo, Enri. É que...
-
Por favor, Nicholas. Não quero falar sobre isso agora. Preciso pensar um pouco.
Dê-me licença, por favor! – vociferou Enri.
Apesar
de ter ficado um tanto chateado com a interrupção dele, eu o entendi. Eu, sem
querer, o coloquei também em uma situação delicada. Agora, o IML havia
divulgado a causa da morte de Douglas e incontestavelmente, as pessoas mais
fanáticas estavam certas. Ele havia sido morto por um vampiro. Talvez as
pessoas nem ligassem para isso e as Soturnas, com o tempo, se esquecessem
completamente.
A
campainha do interfone soou e em um segundo, Enri, estava com ele na orelha,
pois atravessou a sacada e a sala com a velocidade vampírica.
-
Pois não? ... Sim, pode manda-lo subir.
Apesar
da distância entre Enri e eu, captei a voz do porteiro anunciando a presença de
Rômulo, porém, quando ele entrou, achei aquilo estranho, pois senti uma onde de
emoção diferente partindo dele.
-
Enri! Nicholas! Vocês viram a televisão?
Enri
e eu respondemos que sim somente com um aceno de cabeça.
-
Vocês não estão preocupados? –indagou Rômulo.
-
Preocupados? Por quê? – rebateu Enri com a costumeira frieza. – Daqui a pouco
esses mortais estúpidos esquecem essa baboseira, como sempre fazem nesse país.
Apesar
da maneira como falava com Rômulo, ele mentiu. Preocupação emanava dele.
Rômulo
estava apreensivo demais. Eu também conseguia sentir. Então, entrei na
conversa:
- O
que foi, Rômulo? Tem alguma coisa a mais que quer nos dizer?
-
Tem sim. Eu concordo com o que Enri disse. Entretanto, imprimi uns arquivos
para que vocês não tenham o trabalho de fuçar na internet. Vejam! – relatou o
moreno, mostrando-nos um pequeno chumaço de folhas sulfite com notícias de
internet e mais algumas informações coletadas em redes sociais.
O
que tinha ali não era nada bom.
Tanto
nos sites de notícias quanto no de redes sociais, havia postagens e mais
postagens acerca do incidente na casa noturna. Mas o pior é que os internautas
estavam comentando sobre a possibilidade de coexistirem com vampiros. Alguns,
logicamente, criticavam a ideia. Em compensação, outros criam declaradamente
nisso e até postavam artigos curiosos para reforçar seus argumentos. No Twitter
então, não se falava outra coisa a não ser da existência de vampiros, demônios
e outras criaturas sobrenaturais.
- E
agora, Enri? O que vamos fazer? – questionei.
-
Não vamos fazer nada, oras. Ficaremos exatamente como estamos. É como eu te
disse: uma hora as pessoas vão esquecer! Isso que o Rômulo nos trouxe é pura
onda de internet, que mais cedo ou mais tarde será substituída por outra.
-
Calma, gente. Calma! Eu estou aqui, do lado de vocês. E farei o que estiver ao
meu alcance para, aos poucos, acabar com essa onda de histeria. – disse Rômulo,
com seus olhos grandes e castanhos brilhando. E voltando-se a mim, completou –
Estarei do lado de vocês para o que der e vier.
Em
seguida, ele estendeu os braços largos, oferecendo um abraço. E eu o
correspondi.
Emitindo
um rosnado baixo, Enri se esgueirou às sombras da sacada e por lá ficou,
olhando o horizonte, imóvel como estátua.
O
silêncio caiu sobre nós, sendo apenas interrompido por uma goteira irritante
vazando da torneira da pia da cozinha.
Desvencilhei-me
dos braços de Rômulo.
-
Não ligue, Rômulo. Ele está assim por conta dos últimos acontecimentos. Quando
tocamos nesse assunto, ele se irrita mesmo.
-
Tudo bem. Eu estou acostumado com o temperamento dele, afinal, nos conhecemos a
certo tempo, lembra? – abrindo aquele sorriso perfeito.
Por
um breve momento, ficamos nos encarando.
-
Tanto os seus olhos quanto os de Enri são sinistros, mas mesmo sentindo
arrepios, não consigo parar de olhá-los.
Em
resposta, dei apenas um meio sorriso. Captei as emoções dele, mas ele não
queria “doar”. Ele estava desejando outra coisa. E eu sabia que era um pedido.
-
Eu quero ser um de vocês.
No
segundo seguinte, rápido como um trovão, Enri havia se deslocado da sacada para
o living com sua velocidade anormal, apontando o dedo para o rosto de Rômulo.
-
Já disse que isso não vai acontecer! Eu não vou transformar você!
-
Hey, Enri! Que modos são esses com Rômulo?
-
Vê se não enche você também! E não coloque caramiolas na cabeça dele! Não
podemos simplesmente transformar todas as pessoas que vemos pelo caminho!
Mal
Enri disse isso, Rômulo já estava de cabeça baixa, olhos transbordando em
lágrimas, prestes a desabar.
- E
sabe o que mais? Fiquem aí. Vou dar uma volta... e não me siga, Nicholas! –
sentenciou Enri, sumindo, em dois saltos, janela abaixo.
Tomei
Rômulo em meus braços como se fosse um filho ou simplesmente um boneco.
-
Sinto muito, Rômulo. Não se preocupe. Ele ficou muito nervoso com essa
história, mas pode deixar. No momento certo, eu mesmo transformo você!
Rômulo demonstrou alegria com os
olhos. E passando o polegar por sua sobrancelha, completei:
-
Eu prometo!
Depois
de mais um abraço, Rômulo resolveu que ia para casa. Desci com ele até o hall
e, olhando-o nos olhos, reforcei:
-
Eu prometo!
-
Cuide-se, Nick. E se precisar, não hesite em me ligar. Talvez eu seja útil em
algo para vocês – murmurou Rômulo, beijando-me no rosto e me abraçando mais uma
vez.
- Não se preocupe com isso, bonitão.
Um dia você será, só que ainda não se ligou.
Rômulo
deu mais um sorriso maroto e foi embora, dobrando a esquina. Nesse momento, o
perdi de vista.
A
noite estava agradável, então, ao invés de voltar ao apartamento, resolvi dar
uma volta e apreciar o movimento na Avenida Paulista. Viver com outro vampiro ao
lado nem sempre é bom. De vez em quando, é necessário estar entre os humanos e
sentir o calor irradiado e o bombear de corações limitados de tempo,
pertencente aos vivos. Apreciar as feições de pessoas intelectuais e fúteis que
circulam por lá, onde o estilo e a maneira de se vestir é sempre uma marca urbana
registrada.
Divagando
nessas circunstâncias, tomei rumo ao centro velho da cidade, através da Rua
Augusta. Passei por mais uma multidão de pessoas, sempre com alguma bebida na
mão e um sorriso escancarado no rosto, como se estivessem incutidas em um
rodopio de demência.
Transeuntes
de todos os tipos me encaravam com um misto de medo e admiração, até mesmo os
mais machões presentes nos grupos. Divertia-me com a situação e retribuía cada
olhar com um leve aceno de cabeça.
Foi
então, no cruzamento da Av. São Luiz com a Xavier de Toledo, que tudo mudou de
figura. Exatamente quando um cheiro extremamente familiar e inebriante me
invadiu as narinas. Segui o rastro dele e andando um pouco mais, estava no
Largo da Memória, ao lado da Estação Anhangabaú do metrô. Ali, havia uma
concentração de pessoas em crescente burburinho. Delas, vinha a energia do medo
e da indignação.
Perto
o suficiente de ver o que estava acontecendo, aquele aroma atiçou-me deliciosamente
as entranhas. E a fonte dele era um homem, jogado ao chão, com uma baita mordida
no pescoço, banhado em sangue e sem vida.
-
Meu Deus do céu, o que é isso? – indignou-se uma mulher próxima, que possuía um
rosto bonito emoldurado por um moderno corte Chanel.
-
Parece aquele caso do menino que foi morto por mordidas! – observou uma gorda
com cara de quem tinha enfrentado um difícil dia de trabalho na empresa – Espero
que isso não seja coisa de um serial killer!
-
Era só o que faltava nessa droga de cidade! – objetou um senhor com óculos de
aros e olhar inteligente.
De
repente, um terrível grito fez todos arrepiarem-se dos pés a cabeça. Só quando
olhei na direção de onde ele veio entendi meu erro. Uma das espectadoras do
horrendo show apontava para mim completamente transtornada, fazendo uma
terrível careta de horror. Da boca dela saía uma palavra balbuciada que os
humanos ao redor não conseguiam ouvir. Todavia, eu sim.
Em seguida, entendi
como ela percebeu o que dizia. Ao sentir o aroma do sangue, minha anatomia me
denunciou: meus olhos, antes amendoados, estavam rubros, como se fossem extensões
daquele líquido no chão. Os caninos estavam extremamente prolongados, como dois
finos punhais, condizendo com a descrição do médico legista na TV.
“Contudo,
essa arcada possui dentes caninos maiores que os convencionais, extremamente
pontiagudos.”
Quando finalmente a
multidão seguiu o dedo da jovem e a viram apontando diretamente a mim, ela conseguiu
pronunciar o que dizia em alto e bom tom:
- VAMPIRO!
A partir dali, o centro
da cidade se transformou em um verdadeiro caos.
Continua...
Continua...