Contos Vampirescos - O menino da touca e o menino do vidro

A noite era fresca e ia alta. O clima estava bom para uma caminhada de madrugada, mas ultimamente as pessoas evitam sair a esta hora da noite, ainda mais no centro da cidade. Dizem que o mundo anda violento e eu concordo plenamente. Existem seres tão cruéis nesse mundo! Pessoas tão cruéis! E criaturas como eu!

Meu casaco de linho é agitado pela lufada de vento. Com ele sinto o ar da noite entrando em minhas narinas e capto os cheiros oriundos. Alguns são tão agradáveis e outros tão hediondos. Sinto a fragrância de seres humanos se aproximando. São fétidos e pelo cheiro da pele, não passam de adolescentes. Suas vibrações mentais me dizem que estão chapados, doidões. Eles estão vindo atrás de mim, pois devem ter me visto quando passei próximo de um beco e talvez tenham se interessado pela minha aparência bem feita. Suas impressões mentais me dizem que eles querem roubar tudo o que eu tenho para comprar e cheirar mais pedra. Algumas pessoas fazem coisas estranhíssimas para atingir o nirvana.


Finjo que não percebo a barulhenta aproximação e continuo a caminhar com as mãos nos bolsos das calças. Depois de quatro passos sinto algo cilíndrico encostando-se à minha coluna. Em seguida uma voz embargada diz:


- Aí mano! Fica quieto e num fala nada! Vira devagarinho e passa tudo o que cê tive pra nóis!


Viro-me conforme ordenado e encaro os dois sujeitos. O objeto cilíndrico que senti era uma arma calibre 38mm. Os dois estão em um estado tão decadente entre sujeira, ranho ressequido e roupas rasgadas que fico pensando se nessa noite esse seria o tipo ideal de refeição. Eles ficam em encarando com os olhos vidrados, mas não consigo discernir se isso é causado pelo efeito do crack que eles usaram ou se pela minha beleza anormal. Uma touca protegia a cabeça de um deles contra o vento enquanto o outro tinha os cabelos crespos e descoloridos, medonhamente ensebados de tanta sujeira ali contida. Um olha para o outro e diz:


– Se liga como esse cara é pálido! – e o outro completa – Vai, esvazia os “bolso”! Rápido, porra!


Sem esboçar qualquer reação tiro o celular do bolso da calça e entrego a um dos rapazes. Depois retiro a carteira e o dinheiro dentro do outro bolso e sigo o mesmo ritual. Rapidamente eles enfiam tudo nos buracos de seus trapos imundos e apontam novamente a arma para mim num comentário:


– Suas roupa mano! Nois vai levá tudo tamém! Pode tirá o casaco, a camisa e passá pra cá!


– Se eu fizer isso aqui, algum policial pode nos ver e pegar vocês! – comentei calmamente.


Sem raciocinar direito um deles disse:


– Então nois vai com você ali naquele beco. Se fizer alguma coisa, nois passa bala!


Segui na frente deles. O de touca continuava apontando a arma para mim, mas não via meu rosto. Minha boca estava arqueada, despontando um sorriso em minha face de mármore.


Eles caíram direitinho.


O vento soprava furiosamente agitando meus cabelos desgrenhados. Entramos no beco, mas ele insistia em nos acoitar e em me trazer os odores dos vagabundos de rua de uma forma constante. Pisávamos entre os restos de papelão e toda a sorte de lixos que estavam espalhados pelo chão. Enormes ratazanas fugiram quando entramos no local e eu conseguia ver seus olhinhos brilhantes enfiados nas fissuras e rachaduras existentes nas paredes em volta. As ratazanas se aproximam de nós em alguns aspectos, mas não vale a pena comparar minha espécie com essa.


Quando chegamos ao fim do beco, parei e me virei devagar para não despertar a suspeita dos moleques. O menino da touca ainda apontava a arma para mim, mas tremia. Acredito que o crack continuava fazendo efeito em seu sistema nervoso. Em breve teriam outra coisa para tremer.


– Vai mano, começa logo que nois não tem todo o tempo não! – mencionou o da touca. Ele tinha um ar bem arrogante para ser menino de rua.


Meus dedos esguios seguraram o botão da gola e o soltaram do fecho. Parte do meu peito pálido ficou exposta e eles não puderam desviar o olhar. Nós exercemos essa espécie de fascínio nos mortais, independente do sexo e de questões culturais. Nós podemos mexer com a libido de todos sem o menor esforço.


– Não vou fazer isso, moleque. – eles ouviram minha voz que neste momento era um sereno sussurro. Meus olhos frios e amarelados os focalizaram.


O armado de touca firmou os braços e me apontou a arma dizendo:


– Vai mano, passa essas roupa, porra!


Balancei a cabeça negativamente.


– Não.


Mesmo naquele beco, o barulho do disparo ecoou pelas paredes e subiu em zunido, ecoando pelo restante do centro. A bala era bem rápida pela arma que os marginais possuíam, mas eu era bem mais rápido que isso. Eles não puderem perceber pela limitada velocidade humana que tinham, porém em um estalo, eu estava atrás do garoto de touca, enquanto a bala ricocheteou beco acima. Pedregulhos voaram com o impacto de sua projeção na parede.


Segurei a mão armada do menino acima da altura de sua cabeça para que ele não pudesse se mover facilmente. Meu punho de ferro se fechou como aço esmigalhando seus ossinhos frágeis. O menino urrou de dor. Lágrimas saiam de seus olhinhos desfocados. Fiquei olhando para aquela pequena face distorcida pela marreta da dor. Até que por baixo de toda aquela sujeira ele era atraente. Sentiria dó dele se eu fosse humano. Suas lamentações eram bálsamo para mim e quanto mais ele gritava, mais eu me excitava. Decidi que seria interessante brincar um pouco com a comida.


O de cabelos crespos retirou de suas vestes um caco de vidro considerável e veio para cima de mim. Obviamente que percebi seu movimento letárgico em comparação a mim. Seria ótimo abusar deles.


Mesmo com sua mão sangrando por segurar o caco, ele o cravou na parte lateral da minha coxa. Eles eram mirrados e mal alcançavam minha cintura. Essa altura foi suficiente para ele tentar me ferir. Isso, eu disse tentar. Aquela quantidade ínfima de sangue me deixou mais eufórico.


Soltei o aperto que empregava no menino da touca e este caiu no chão segurando o pulso quebrado com a mão boa chorando debilmente. O menino do vidro deu um passo para trás quando viu minha reação de indiferença. Eu havia sentido uma ardida no local onde ele cravara o vidro, mas voltei ao estado normal nos segundos seguintes. Eu me regenero bem rápido. A expressão do garoto do vidro se distorceu do espanto ao horror absoluto quando ele viu meus caninos crescerem e ficarem extremamente pontiagudos. Ridiculamente ele correu de encontro à parede no fim do beco e tentou escalá-la.


– Por favor, não! Não me pega! Não... não me pega! – dizia ele em seu pânico declarado.


Eu quase ri da reação dele. Como as pessoas perdem a compostura tão rápido. Como perdem a macheza quando não estão mais armados. Estava muito divertido.


Minha velocidade sobrenatural fez o lixo ao redor rodopiar pelo ar. Até que o menino estava se desempenhando muito bem na escalada. Pena que não era tão ágil quanto eu. Minhas unhas afiadas cravaram em sua nuca e o puxaram de volta. Ele caiu com estrépito no chão. Os cortes produzidos pelas unhas foram profundos e ele gemia de dor. Ah, o lamento! Era tão bom! Ele colocou a mão na nuca como se isso lhe fosse aliviar a dor. O sangue começou a brotar dos buracos e eu senti seu cheiro maravilhoso, inebriante e total. Olhei para o menino do vidro e para o menino da touca, de um para outro. Fiquei em dúvida de qual dos dois beber primeiro.


O menino da touca estava se contorcendo e chorava da mesma forma como se suas lágrimas nunca fossem secar. O menino do vidro havia sido mais valente que ele quando correu e me feriu com o caco. Beberia dele por último. Deixei o vento me trazer o cheiro de sangue novamente e farfalhar meu casaco. Fechei meus olhos e abri meus braços sentindo o néctar da vida pulsando pela veia dos garotos. O menino do vidro rastejou até o fim do beco e encostou-se na parede. Ele assistiria eu beber o sangue de seu companheiro dali mesmo.


Não gosto de me alimentar com muito barulho, entretanto o outro garoto continuava chorando. Cheguei vagarosamente perto dele e ajoelhando no chão, desferi-lhe uma bofetada no rosto. Ele ficou desnorteado e molenga.


Peguei seu corpinho mole e esticando-o em meu colo afastei um pouco sua cabeça. A jugular ficou saliente e eu a via pulsar. Meu polegar a tocou e pude sentir o palpitar incessante do coração. Tum tum. Tum tum.


Tum tum. Tum tum.


Seus olhos pareciam me chamar para ele. Tinha quase compaixão por esses garotos agora. Ou melhor, pelo sangue deles.


Abri minha boca e aproximei-a do pescoço do menino da touca. Minhas presas rasgaram a carne e perfuraram a jugular. O sangue jorrou para dentro da minha garganta e eu tomei com sofreguidão. O menino se debateu debilmente e com meus braços fortes contive seus solavancos. A sede estava me matando por dentro e eu sorvia tudo para dentro do meu corpo.


Ao mesmo tempo olhava para o menino do vidro com meus olhos tão gélidos e monstruosos quanto um leão comendo a caça. Ele me retribuía o olhar, porém não mais berrava de desespero. Apenas lágrimas escorriam de seu rosto e lavavam sua imundície de dentro para fora.


Os espasmos do garoto em meu colo se tornaram fracos até não mais existirem. O sangue não mais jorrava da cavidade feita por meus caninos. Seu coração batia tão tristemente que em instantes ele iria partir. Depositei seu corpinho no chão e me levantei agilmente. O menino do vidro se impressionou com minha agilidade e arregalou os olhos. Via nele uma pontada de esperança ainda, aquele último suspiro que nosso corpo dá esperando por salvação.


Andava calmamente até ele e ele me encarou nos olhos. Ele via que em meu rosto havia a expressão de que agora tudo estava acabado. O beco foi ficando cada vez mais escuro para o menino. Ele apenas fechou seus olhos e esperou para nunca mais abrí-los.

Autor: Julio Vernareccia

Um comentário:

  1. Julio! Gente, como esse menino escreve divinamente! Me segurou no conto do começo ao fim. Você sabe usar as palavras amore!
    Muito bom, vou voltar aqui pra ler mais hein?! E aguardo! Já imaginei esse vampiro um cara mto gatz sedução HAHAHA

    beeijos, da sua mais nova fã ;D
    :*

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