BELOS E MALDITOS - Capítulo 1


O Encontro

Enri, o Escuro


Senti uma vibração estranha ao abrir os olhos. Havia alguém tenso num cômodo próximo ao meu quarto. Ondas parecendo chibatas deslizavam pela minha pele. Saí debaixo da cama e me aprumei. Apesar de ter um belo quarto, com vários aparatos tecnológicos modernos, não usava a cama como as pessoas usam. Nós, Escuros, tínhamos a mania de dormir em locais apertados, com os braços cruzados no peito. Meu local predileto era embaixo da cama.
Olhei-me no espelho. Os olhos amendoados, a pele branca era como leite e os lábios levemente rosados estavam lá. Analisei aquele rosto como se não fosse o meu. Ousei temer um dia não ser mais tão belo como agora, mas lembrei-me que era uma criatura da qual o tempo não poderia mais tocar.
Saí do quarto só de cuecas exibindo o corpo rígido e os músculos definidos. Ao entrar na sala vi um anjo no sofá. Tão branco quanto eu. Com as mãos cruzadas na altura do queixo. Ar de preocupação. Só de calças. A tatuagem do peito à mostra. Os cabelos ondulados e escuros caindo sobre os olhos. As vibrações que sentia vinham dele.
Enri, meu criador.
– Eu me lembro. Eu pedi a você. Eu ordenei a você. – murmurou ele com a as mãos sobre a boca. As vibrações ficaram mais intensas como se realmente quisessem me chicotear. Ele nem sabia da existência desse meu dom e sentia que não devia compartilhar isso com ele, por mais que ferisse meu coração.
Continuei com os olhos pregados nele tentando compreender o que ele disse. Uma das características de Enri é que ele falava algumas coisas em enigmas e eu demorava certo tempo para entender.
 – Do que você está falando? – questionei.
– Eu pedi a você, Nicholas. E você me desobedeceu. – ele levantou o rosto e seus olhos de um verde hipnótico e claro pairaram sobre os meus. – Você ainda vai colocar nossa espécie em risco.
O olhar dele era tão profundo que fazia o chão que eu pisava esfarelar.
– Desculpe... não sei do que está fal... – antes de terminar a frase eu havia compreendido.
Compreendi porque ele agora vociferava as palavras na minha cara. A saliva dele atingia meus poros. Ele havia usado sua velocidade sobrenatural e foi tão rápido que o ar fez um ruído agudo ao ser deslocado.
– EU PEDI MAIS DE MIL VEZES PRA VOCÊ NÃO CAÇAR PRÓXIMO DE ONDE NOS ESCONDEMOS! E VOCÊ ME DESOBEDECEU!
Inutilmente eu tentava apartar aquela sensação de aperto dentro do peito com as mãos estendidas, pedindo para ele parar com aquilo. Fazia aquele gesto como se quisesse me proteger de suas palavras ou de sua ira.
– Mas... como você soube disso? – perguntei tentando adivinhar como ele havia descoberto.
– O mundo inteiro sabe! – ele apontou para a TV de plasma logo à frente do sofá – Dê uma olhada você mesmo.
Foquei a enorme TV à nossa frente e senti meu coração despencar e voltar ao lugar. A voz do âncora do telejornal narrava imagens de policiais em frente à uma casa noturna, com seguranças alvoroçados correndo pra lá e pra cá tentando acalmar a multidão que saía correndo porta afora. A casa noturna onde eu estivera na noite passada. Depois apareceu um close de um garoto de olhos azuis. Na reportagem mencionaram que ele simplesmente havia sido assassinado dentro da danceteria com ferimentos na região da jugular. Não havia sangue no local do crime.
Douglas. O cara que eu matei. 
Enri parecia mais calmo.
– Eu falei que pra sermos discretos Nicholas. Temos de caçar pessoas que não farão falta pra ninguém. Bandidos, drogados, mendigos, putas, gente solitária. Essa laia. Porque você matou um cara dentro de uma balada aqui perto?
– Enri, como você sabe que quem matou esse cara fui eu? – questionei em tom de desafio.
– Primeiro, você está bem alimentado. Está até corado. Segundo, não existem outros Escuros que morem aqui perto, a não ser eu e você. Ontem eu estava aqui e não precisei me alimentar. Terceiro, você não sabe mentir. Deu pra ver nos seus olhos quando você viu a reportagem.
Pronto.
Ele tinha descoberto. Enri era bem esperto e observador. Observador demais pro meu gosto. Tinha visto até que eu estava corado. Nem eu havia percebido isso. Sinal de que precisava ficar mais atento.
– Tudo bem. – ele disse mudando seu tom de voz – Vamos passar a agir de forma mais discreta, tá legal? Isso não pode mais acontecer, ok?
Senti as vibrações dele se acalmando e me convidando para me atirar em seus braços.
Ele se sentou novamente no sofá e agilmente corri e me estirei com ele. O cheiro doce dele invadiu minhas narinas e aspirei aquele aroma maravilhoso como se fosse a primeira vez que sentia sua fragrância. Ficamos daquele jeito um tempo até eu quebrar o silêncio.
– Tá pensando em quê? – perguntei.
– Em como você caçou aquele cara que matou.
– Quer saber como foi? – meus olhos encontraram os dele.
– Sim. – respondeu ele afagando meus cabelos revoltos e repicados.
– Queria caçar um menino branco e de olhos azuis. Fui àquele lugar porque sabia que encontraria alguém com essas características facilmente. Apesar de todos os caras da balada ficarem olhando pra mim, foquei em um que possuía o que eu desejava e era do jeito que havia imaginado.
Os olhos de Enri brilhavam de satisfação. Continuei.
– Daí um me chamou a atenção. Não demorou muito e ele já estava olhando pra mim. Ficamos nos olhando na pista e ele se aproximou.
– Nossa, ele teve coragem então! – espantou-se Enri. – Mesmo que os mortais tenham fascínio por nós, algo dentro deles diz para não se aproximarem mais. Acho que é o instinto de autopreservação. De alguma forma, se chegarem mais perto sempre correrão risco de morte. Mas me diga o que aconteceu a seguir. – Enri me olhou de forma maliciosa e passou o polegar pelo meu queixo.
– Bem, daí usei o artifício da sedução. Eu o beijei.
Enri revirou os olhos.
– Ah, você precisa sempre fazer dessa forma quando caça? Porque não pode simplesmente chegar e morder? – senti uma onda tensa emanando de seu corpo.
Hellooo! Eu tava na balada! Como eu ia morder alguém assim com um monte de gente em volta.
– Mano, ninguém ia perceber! Era só chegar e pronto.
– Ai meu que saco você hein. A gente não pode ficar em paz por um momento sem que você tenha ciúmes de tudo o que eu faço? – o tom da minha voz era para sentenciar essa discussão imbecil.
Enri ponderou sobre o que disse. As vibrações que sentia mudaram novamente, demonstrando arrependimento com o comentário feito.
– Tá legal... você tem razão – disse ele fazendo um biquinho. – Desculpe. E desculpe por ter berrado com você agora.
Beijei seus lábios finos pela enésima vez.
– Nick, to com fome. Preciso sair pra caçar. Quer me acompanhar?
– Não, me alimentei ontem, lembra? – respondi com certa ironia na voz.
– Mesmo assim. Venha pelo menos me fazer companhia.
Agora foi a minha vez de revirar os olhos.
– Tá bem, tá bem! Vou colocar uma roupa.
– Nada muito “cheguei”, tá? – brincou Enri.
– Olha só quem fala! – retruquei. – Ah! Esqueci de uma coisa. Mesmo que meu coração não bata mais, ele é todo seu. Não se esqueça.
Voltei correndo para o quarto largando um Enri com os olhos brilhando de emoção.


***


Meia hora depois estávamos no alto do prédio onde morávamos. Enri havia pensado em visitar e se alimentar de uma pessoa que possuía altos recursos financeiros. Ele conhecia um jovem e órfão milionário chamado Rômulo Sperandeo. Seus pais foram viajar para Angra dos Reis, mas na ocasião Rômulo recusou o convite. E por conta disso sobreviveu ao trágico acidente de helicóptero que vitimou sua família. Como seu pai havia deixado tudo para ele em um testamento antecipado, Rômulo herdou toda a fortuna.
Uma história triste, por assim dizer.  Entretanto, Enri disse que queria sugar sangue nobre. Desde a morte de seus pais, Rômulo, que havia conhecido Enri uma noite em um bar, tornara-se doador, uma pessoa que conhece a existência de vampiros e se oferece como alimento aos Escuros. Ele havia comentado comigo uma vez sobre esse cara e tinha dito que um de seus maiores desejos era se tornar imortal pra ver se sua dor era amenizada. Havia me dito também que não teria problemas em beber dele, uma vez que nesse caso não havia mortes.
– Você sabe onde ele mora? – questionei com as mãos nos bolsos da calça preta.
– Sim, Nick. Estou só avaliando as possibilidades. Não sei se seria melhor pegarmos ele em casa ou no bar onde costuma encher a cara. Desde que seus pais morreram, ele torra a grana com bebidas. É um alcoólatra. E uma vergonha para os pais que devem estar se revirando na cova.
– Nossa! Você é bem insensível de vez em quando! – respondi.
 – Haha! De vez em quando? Você sabe que sou completamente desumano. Desprovido de qualquer sentimento mesquinho. A não ser por você.
Eu revirei os olhos.
Ficamos em silêncio algum tempo enquanto o vento lambia nossos casacos e cabelos. O uso de roupas mais pesadas era somente uma questão de bom-senso entre os mortais, visto que vampiros não sentem variações de temperatura de forma tão direta quanto seres humanos.
Enri olhava os prédios logo abaixo e analisava com calma os movimentos da cidade. As luzes eram fortes e vibrantes. Víamos tudo com exatidão. Olhei em seus olhos e percebi que ele estava fazendo algo que eu gostava. Ele estava apurando a visão para enxergar além do que a visão humana consegue ver. Inflava o ar da noite, que chegava gostoso em nossas narinas desenvolvidas, sentindo e apreciando os aromas que o vento trazia.
Ele agia como um perfeito predador.
– Vamos? – perguntou Enri com um meio sorriso.
– Pra onde?
– Daremos um pulo na casa dele só para ter certeza. Talvez ele esteja no bar de novo, mas não custa conferir.
– Certo, então vamos descer e caminhar.
– Quem disse que vamos caminhando? Vamos fazer um caminho muito mais fácil. Nós vamos por cima.
– Por cima? Como assim?
– Saltando, oras! – respondeu ele erguendo os braços.
Fiquei imaginando os tipos de saltos que faríamos e ao olhar para o parapeito do edifício, eu entendi. E fiquei com receio.
– Você não me ensinou a saltar! – indaguei.
– Pelo que sei você salta muito bem. Lembro-me de você saltando no começo. Isso vai ser fácil.
– Sim, quando saltamos daquela vez em que caçamos pulamos somente um sobrado. Estamos num prédio muito grande dessa vez.
– Querido, nós vamos saltar de um prédio para outro. Pensou que íamos nos jogar ao chão? Que besteira. Mesmo que a gente não morra, seria uma queda feia. Vários ossos quebrados.
Eu não estava afim de me quebrar. É chato colocar os ossos no lugar e é necessário o consumo de muito sangue pra realizar essa proeza.
Enri colocou seu braço em minha cintura e farejou de leve meu pescoço.
– Vem! Eu ajudo você na primeira vez.
Estávamos na ponta. Engoli em seco ao olhar para baixo, na borda do topo. Com a visão normal, via as pessoas como se fossem formigas. Os carros passavam nas ruas parecendo besouros em linha reta.
– Preparar... – Enri curvou as pernas.
– Tem certeza, meu? – estava com medo.
– Flexionar... – Enri dobrou ainda mais os joelhos.
– Sério, não quero mais ir! – estava em pânico.
– Saltar! – Enri deu impulso e saltamos.
Enri deve ter ficado permanentemente lesado do ouvido direito. Dei um berro tão alto que espantaria até as nuvens do céu.
Contudo, a sensação foi indescritivelmente fantástica.
Quando Enri deu o impulso, fomos içados num movimento uniforme e simétrico. Agarrei-me em seu corpo, mas éramos tão leves que parecíamos caminhar em pleno ar. Olhei rapidamente para baixo e me deu frio na barriga vendo tudo passar rápido daquela forma. De repente, começamos a despencar. Eu entrei em pânico e minhas unhas cravaram na pele dele. O ar deslocou-se e parecíamos estar dentro de um vendaval, tamanha a velocidade. Entretanto, no segundo seguinte, estávamos em solo seguro novamente como se nada tivesse acontecido.
– Uau!? – exclamei arfando. – Que coisa mais... incrível!
Apesar do pânico inicial, a sensação seguinte foi maravilhosa.
– Meu, não tem segredo. Você aprende rápido! É inteligente e corajoso. Tenho certeza de que vai aprender mais e mais. Sair-se-á muito bem, com certeza! – mencionou Enri entusiasmado com minha reação, sorrindo e mostrando os caninos levemente pontudos.
Se meu corpo fosse vivo, teria ficado vermelho de vergonha naquele instante. Sempre ficava muito sem graça com elogios. Devido o salto eu ainda tremia levemente como se tivesse adrenalina injetada na corrente sanguínea.
Enri passou por mim em direção à borda do prédio onde estávamos.
– Chegue mais perto, Nick. Agora eu vou fazer sozinho e você observa. É só olhar onde quer saltar e desejar. O corpo faz o resto. É bem simples. É como usar a voz de comando.
– Tudo bem. – respondi um tanto inseguro.
Enri olhou para o prédio seguinte, flexionou as pernas e saltou. A visão foi fantástica. Enri deu um salto estupendo, balançando as pernas com graça. Seu casaco farfalhou sonoramente com o vento no trajeto. Pousou leve como um gato na borda seguinte. Aprumou-se e gesticulou para que eu fosse também.
Pensei da forma como ele havia ensinado. Olhei para onde queria que meu corpo mágico me levasse e desejei. Flexionei as pernas como o havia visto fazer e impulsionei.
A mesma sensação do primeiro salto me invadiu. Porém, agora tive a sensação de liberdade absoluta, pois instintivamente repetia os mesmos movimentos do meu criador. Eu literalmente voava em direção à borda seguinte, com o vento chacoalhando e desgrenhando ainda mais os meus cabelos. O frio dentro da barriga era tão maravilhoso que por mim poderia me locomover sempre dessa forma. Não imaginava que possuía uma força tão grande nas pernas também.
A partir daí passamos a saltar individualmente. Sentia que do corpo de Enri emanavam vibrações de satisfação para comigo. Ele estava orgulhoso de mim, mas não era necessário o uso desse talento para notar. Isso era visível em seus olhos.
Depois de mais uns saltos, paramos em cima de um prédio.
– Veja, Nick. O edifício é aquele.
À nossa frente, estava o prédio onde Rômulo morava. Enri ergueu a mão e apontou para uma sacada acesa.
– Observe. Milagrosamente ele está em casa hoje. – lançou ele ironicamente.
Fiquei observando o edifício na direção em que Enri apontava. O projeto arquitetônico era muito bem feito. Haviam detalhes incrustados no concreto, como linhas e figuras sem intenção. Eram formas abstratas que corriam de lá pra cá, num ziguezague planejado.  Com certeza quem morasse no edifício possuía vastos recursos financeiros. Não somente esse prédio em si, mas o bairro todo era único. Diferente dos demais. Percebi que tínhamos saído dos Jardins, entretanto estávamos ainda na região nobre do centro de São Paulo.
– Sinto cheiro de bebida. – mencionei.
– Exato! – disse Enri com um meio sorriso, destacando uma covinha existente no rosto. – Neste exato momento ele está bebendo.
Enri estendeu sua mão pálida em minha direção. Seu olhar verde estava mais claro apesar da escuridão da noite.
– Vamos juntos dessa vez. – disse.
Segurei sua mão e da borda do último edifício saltamos diretamente para a sacada. Claro que o salto foi perfeito, visto que estava sendo segurado por ele. Pousamos no parapeito. Pensei que de repente me desequilibraria, contudo ter um corpo vampiresco tem suas propriedades mágicas e isso não aconteceu.
Leves como plumas. Fortes como aço.
Mais um pequeno salto nos fez entrar no terraço. Agora estávamos de frente para a grande janela que o separava do living. Enri colocou sua mão no vidro da janela e a porta deslizou calmamente para o lado. O cheiro de uísque ficou mais forte quando o ar quente do interior do cômodo nos alcançou.
– Sinta o cheiro forte. Ele bebe demais!  – sussurrou Enri. Sua voz era inaudível para humanos, não para mim.
Assenti com a cabeça e entramos no living.
O local era grande, bonito e bem decorado. Havia móveis planejados espalhados pelo apartamento, mas as condições do mesmo estavam começando a ficar precárias. Havia poeira por cima das coisas e pelo chão. Peças de roupas masculinas (que provavelmente pertenciam a Rômulo) estavam espalhadas por cima de um grande sofá em formato L. Vagarosamente andei pela ampla sala, passando pela sala de jantar. Apesar de termos corpos físicos, nossos movimentos eram silenciosos. Ali, um espelho fazia a vez de parede e puder ver nossos reflexos. Estávamos mortalmente belos, como se o vento não tivesse nem sequer nos acariciado. O cheiro da bebida intensificou-se quando alcancei um corredor com várias portas. Imaginei quem da família de Rômulo dormia em qual quarto.
Uma música melancólica começou a ecoar pelo local. Fiquei apreensivo, porém reconheci aquela melodia que me tocou aos poucos. Seu nome estava arquivado em algum local distante e brumoso da minha memória, entretanto recordei-me. Rômulo ouvia Sonata ao Luar de Bethoween. Comecei a sentir ondas frias de vibração. Ele emanava algo diferente do que já havia sentido. Era algo lento, denso e gelado. Entretanto, pela música e por aparente estado de espírito, imaginei que aquilo fosse sinal de depressão.
Era difícil descrever a segunda sensação que as vibrações de Rômulo emitiam. Era uma coisa corrosiva e morna. Era como se fosse rancor ou mágoa. Algo contido dentro de um coração machucado e vitimado por um causo da vida, por uma tragédia. Estava sentindo muita pena dele naquele momento.
A terceira sensação me deixou apreensivo e estaquei. Essas vibrações não vinham de Rômulo. Nem de Enri. Muito menos de mim.
Parei e prestei atenção, tendo um Enri se movimentando logo à minha frente, sem perceber o que eu estava sentindo. Essa terceira sensação vibrava forte e eu sabia que isso era sinal de raiva. Contudo, havia muito mais que isso vindo dessa energia. Havia ódio puro, emanado de forma destruidora e escaldante. E havia poder. Um poder forte, agressivo e diferente do poder de todos os Escuros que já senti.
Ao mesmo tempo em que as vibrações atingiram seu insuportável ápice de aceitação, Enri gritou:
– Cuidado!
Mas sua advertência foi tarde demais.
A porta do quarto mais próximo ao nosso se abriu com estrépito e Enri foi arremessado no ar rodopiando em minha direção. Seu corpo bateu com um forte impacto em mim e nós dois voamos de volta à sala de estar, detonando tudo o que havia pela frente. O sofá arrastou-se alguns metros e a mesinha de centro que havia ali ficou reduzida a pedaços.
 Usando nossa agilidade sobrenatural, colocamo-nos de pé rapidamente. Olhei para Enri. Ele tinha um filete de sangue negro brotando do lábio inferior.
Então pude ver os responsáveis por aquela vibração. Ou melhor. As responsáveis. Do corredor dos quartos saíram duas garotas. Uma delas era a criatura feminina mais bela que já havia visto entre nós. Possuía cabelos tão lisos e de um loiro tão claro que pele e cabelo pareciam ser uma coisa só. Seus olhos eram feitos de um lilás claríssimo e dotados de um brilho hipnótico fora de série. Uma noturna. Ela vestia uma blusinha, um jeans justo e uma bota de cano longo por cima da calça, todos negros.
– Giovanna! – bradou Enri expondo suas presas afiadas e maiores. Eu olhava aqueles dois sem entender.
Seus olhos passaram de esverdeados a vermelhos em segundos. Parecia que suas pupilas estavam injetadas de sangue.
Sem rodeios, a vampira de nome Giovanna avançou com sua velocidade sobrenatural para cima de Enri. Ele não pôde se esquivar a tempo e recebeu um golpe que o fez voar mais alguns metros e cair no chão novamente.
Corri na direção dela para impedi-la (ou rasgá-la em pedaços se fosse preciso), todavia fui impedido por outra noturna, que me deu uma gravata no pescoço. Empreguei minha força sobre-humana para me livrar dela, mas ela possuía mais força que eu. Não conseguia removê-la nem um milímetro.
Enquanto isso olhava para Enri, que estava de pé mais uma vez. Giovanna correu novamente para cima dele somente com o peso do corpo, sem poderes. Felizmente, ele foi mais rápido que ela. Ele saltou no ar e projetou um chute giratório que a acertou em cheio no rosto. O corpo dela rodopiou várias vezes e destruiu a mesa de jantar e o espelho, fazendo o maior barulho. Os cacos caíram todos em cima dela.
Com o descuido da noturna acertada por Enri, a que estava me segurando afrouxou um pouco o golpe. Sem perder tempo, projetei meu corpo para frente e arremessei a coitada, que voou por cima de mim. Porém, meu golpe não a pegou com tanta surpresa e como uma felina, ela caiu de pé sem fazer ruído.
Não havia vontade de fugir. Estava presente dentro de mim somente a vontade de matar. Quando esses instintos afloravam, eu tentava reprimí-los a todo o custo. Exceto em situações como essa, onde eles nos favorecem e nos garantem mais algumas noites de sobrevivência.
Giovanna se levantou do chão com o rosto salpicado de respingos negros. Seu rosto estava cortado em várias partes e o sangue havia esguichado. Fragmentos de espelho estavam enfiados pela pele da noturna.
– Meu Deus! – murmurei.
Em seguida algo aconteceu.
Os cacos enfiados em seu rosto e ombros começaram a ser expelidos e jogados para fora da carne. Os cortes foram ficando cada vez mais estreitos, fechando-se em seguida. Sua pele e carne tinham se regenerado por completo, devolvendo à vampira sua beleza sobrenatural. Os olhos de todos estavam vermelhos dentro do recinto, trazendo uma luminosidade rubra às paredes.
Encarei a vampira que havia me agarrado por trás. Ela tinha um visual gótico e era mais chamativa que Giovanna. Blusinha preta, coturno, meia-calça rasgada e micro saia. Os olhos estavam encobertos por uma maquiagem negra e pesada que contrastava com as pupilas vermelhas. Os cabelos eram ruivos, revoltos e tão vermelhos quanto os olhos. Percebendo meu interesse e expondo os dentes, ela disse ironicamente:
– Prazer. Meu nome é Letícia.
As duas noturnas pararam uma ao lado da outra, de braços cruzados, nos encarando. Elas sorriam para nós mostrando as presas afiadas e nos olhavam de um jeito malicioso através daquele brilho rubro das pupilas.
Em seguida elas simplesmente desapareceram bem na nossa cara.
– Será que usaram a rapidez? – questionou Enri mais pra si mesmo do que pra mim.
– Nã... – suspendi a resposta. Eu estava sentindo as vibrações delas sendo projetadas do mesmo local de onde elas estavam agora há pouco. Mas dizer isso revelaria meu dom secreto a ele.
Letícia e Giovanna se moveram novamente deslocando o ar e provocando com isso um estalo grave. Enri e eu fomos erguidos pelo ar, como se uma mão invisível estivesse segurando nossos pescoços. Depois ficaram visíveis novamente e pude perceber o tipo de poder que elas utilizavam. Algo diferente dos poderes que tinha visto em outros vampiros até então.
– O que vocês querem aqui, afinal de contas? – questionou Enri com certa dificuldade. Os pesados punhos oprimiam nossas traquéias e cordas vocais.
Giovanna deu uma risada antes de responder com sua voz grave e rouca.
– Não sabe Enri? Pois vou lhe contar. Um mortal foi assassinado de forma misteriosa dentro de uma danceteria, próximo da Bela Cintra. Nosso pessoal e alguns mortais que trabalham pra nós suspeitam de antemão que ele teve o sangue drenado do corpo, devido a polícia não ter encontrado nenhum vestígio no local do crime. Agora respondam: que tipo de sanguessuga que mora na Bela Cintra tem o costume de freqüentar esses buracos?
Eu engoli em seco depois desse comentário.
– Viemos somente dar um recado. – continuou Letícia, com uma voz irritante que mais parecia uma gralha louca. – Se um de vocês estiver envolvido nesse assassinato, os dois vão a julgamento. Tanto você como esse seu namoradinho aí! – terminou ela esticando o nariz para mim e sorrindo com deboche.
– Estaremos de olho em vocês! – sentenciou Giovanna.
Da mesma forma em que estávamos erguidos, caímos no chão. As duas simplesmente voaram janela afora e desapareceram. Pelas vibrações serenas e pela ingestão eminente de bebida, Rômulo dormia e nada havia escutado, apesar do barulho.
Enri estava estático sentado no piso laminado e olhava para a janela como que processando um pensamento. Sua energia emanou e alterou-se num grau dantesco. Com os olhos verdes brilhando em fúria, ele disse entredentes:
– Eu disse pra você! Olha o que a porra da sua atitude nos causou.
Focando em seus olhos de esmeralda e pelo impacto de suas palavras, senti o presságio de uma tempestade se aproximando. E havia carregado Enri comigo para o olho do furacão.

Continua...

3 comentários: